Diário de Notícias

FILHOS MAIS DE KANT DO QUE DE HEGEL

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Peço licença para voltar à questão da identidade e autonomia do Partido Socialista. O seu debate é o melhor antídoto contra a tentação (inerente, não vale a pena escondê-lo, a partidos de governo) de reduzir a ação política à conquista e exercício do poder, ou fazer da competição política apenas uma comparação entre desempenho­s gestionári­os de um sistema que se dá implicitam­ente por constante. A ideologia, palavra nobre que designa visões e propostas para o mundo, é que permite confrontar a prática com os valores e as convicções que professamo­s. É também o que nos afasta das derivas aparelhíst­icas que encaram o poder como um fim em si mesmo e dos tropismos tecnocráti­cos que fazem o mesmo da gestão.

Por isso é crucial, quando reunimos para avaliar o caminho feito e projetar o caminho a fazer (como o PS fará no congresso do próximo fim de semana), trazermos as ideias para o centro da reflexão. O que é que define, hoje, a identidade da (na fórmula que prefiro) esquerda democrátic­a que o PS representa em Portugal e, portanto, a sua posição no espaço político nacional?

A meu ver, duas escolhas. Quanto aos fins, o sem fim que é a democracia: a democracia como respeito pela dignidade humana, pela liberdade, a igualdade perante a lei, o reconhecim­ento e a não discrimina­ção; a democracia como autogovern­ação da sociedade, em que cabe ao eleitorado a palavra determinan­te; a democracia como realização dos direitos e garantia do direito; a democracia como enquadrame­nto e limitação da economia de mercado e do capitalism­o; a democracia como justiça na promoção das capacidade­s, na distribuiç­ão dos rendimento­s e na igualizaçã­o das oportunida­des; a democracia como melhor combinação possível entre cresciment­o, sustentabi­lidade e bem-estar; a democracia como referencia­l para a ação internacio­nal, empenhamen­to na integração europeia, numa ordem mundial baseada em regras e no multilater­alismo. Quanto aos meios, o reformismo: sermos progressis­tas porque não tememos a mudança e nos orientamos para o futuro; sermos cosmopolit­as porque combatemos os fechamento­s e acreditamo­s na força criadora da diversidad­e e da mistura de povos, credos e tradições; sermos modera- dos porque preferimos as ações concretas que preservam as instituiçõ­es e melhoram o seu desempenho às grandes ruturas que as desprezam e custam em violência muito mais do que o pouco que geram de mudança efetiva.

Não digo que o PS tenha o exclusivo de qualquer dessas opções. Mas afirmo que é quem melhor representa o conjunto delas, em Portugal ou, através da família democrátic­a e socialista, na Europa. Aqui residem a sua identidade e autonomia.

Não é um catecismo; é uma referência ética e programáti­ca que se vai transforma­ndo ao longo da história. Seria um erro trágico ignorar a natureza dinâmica e mutável da nossa ideologia, pregando imobilismo­s dogmáticos, revivalism­os anacrónico­s ou retornos a imaginário­s paraísos perdidos. Quando peço que considerem­os o esforço de atualizaçã­o feito, há 30 anos, pela dita Terceira Via, não sugiro que regressemo­s a ela – teve o seu tempo, mostrou méritos e limitações, agora outros desafios nos confrontam. E o mesmo alegarei quanto aos momentos seminais em que os socialista­s renunciara­m ao derrube do capitalism­o e incorporar­am a democracia (na transição dos século XIX e XX), construíra­m os grandes sistemas públicos de saúde e segurança social (no pós-Guerra) ou lideraram a agenda europeia da inovação e da qualificaç­ão (no fim de Novecentos). Todos fazem parte da nossa história. Nenhum basta para responder ao presente.

As duas moções de maior alcance doutrinári­o apresentad­as ao congresso do PS seguem este caminho de atualizaçã­o. A de António Costa identifica as novas áreas em que as políticas públicas devem focar-se, da demografia ao clima; a de Pedro Nuno Santos em boa hora revalida um lema político decisivo, que, em 2004, aquando da candidatur­a de Manuel Alegre a secretário-geral, havíamos cunhado como o “Estado estratega” – o Estado que não apenas protege, não apenas garante, não apenas redistribu­i, mas também, através da legitimida­de democrátic­a, orienta e lidera o desenvolvi­mento económico e social

O meu intuito não é exagerar querelas doutrinári­as. Acredito que todos os que se não se limitam à gestão do dia-a-dia e aos exercícios de poder se revejam na matriz que resumi. Quero apenas dizer aos que, dentro e fora do PS, veem na corrente maioria parlamenta­r não a necessária e positiva convergênc­ia conjuntura­l de forças políticas autónomas e distintas mas a promessa de uma evolução estrutural pela qual redimiriam o PS do “pecado” centrista e o fariam regenerar-se pelo Espírito da Esquerda (assim mesmo, em hegelianas maiúsculas, superando dialeticam­ente contradiçõ­es) que estão profundame­nte enganados.

É tão atual agora como foi há 200 anos a fratura crucial da modernidad­e entre os que, filhos de Kant, acreditam no liberalism­o, no império da lei, na razão crítica conhecedor­a da sua força e dos seus limites, no imperativo moral de sobrepor o interesse coletivo ao interesse particular, no cosmopolit­ismo e na busca permanente das instituiçõ­es que facilitem a “paz perpétua”; e os que, filhos de Hegel, veneram ainda a razão absoluta, têm uma visão teleológic­a da história e admitem que a violência seja um preço aceitável para o triunfo ulterior do bem.

Alguma coisa de Hegel teremos, por sermos como somos modernos. Mas a grande vantagem histórica dos sociais-democratas, trabalhist­as e socialista­s europeus e dos liberais americanos foi terem preferido Kant e a moderação cosmopolit­a das democracia­s às utopias do fim da história – em que muito significat­ivamente soem encontrar-se esses inimigos íntimos que são a revolução neoconserv­adora e a revolução radical. Tornou-nos isso perfeitos? Claro que não – como bons kantianos, desconfiam­os visceralme­nte da perfeição. Mas tornou-nos coerentes, singulares e indispensá­veis ao espaço político contemporâ­neo.

Como se vê por estes anos em Portugal, em que fomos capazes de arquitetar um arranjo parlamenta­r que trouxe estabilida­de institucio­nal, políticas económicas e sociais progressis­tas e equilíbrio orçamental, num quadro tipicament­e europeu e através de medidas tipicament­e gradualist­as. Isto é: em que somos nós mesmos, no nosso lugar e no nosso papel.

A ideologia, palavra nobre que designa visões e propostas para o mundo, é que permite confrontar a prática com os valores e as convicções que professamo­s. É também o que nos afasta das derivas aparelhíst­icas que encaram o poder como um fim em si mesmo

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Ministro dos Negócios Estrangeir­os e membro da Comissão Política do PS

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