Diário de Notícias

Lição de vida

MANUEL ALEGRE HISTÓRICO DO PS

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Conheci-o em Nambuangon­go em 1962. Passámos uma noite a conversar. Éramos novos e trazíamos em nós todas as utopias do mundo. Foi a primeira vez que ouvia expressão “Socialismo em liberdade ”. Mais tarde, já depois do 25 de Abril,ele repeti-la-ia muitas vezes.Para António Arnaut,não eram apenas palavras nem conceitos abstratos, mas uma forma de vida que ele praticava. Foi um dos socialista­s mais genuínos que conheci. Socialista praticante, democrata praticante. E sobretudo um humanista, alguém para quem as ideias eram inseparáve­is do sentimento e do coração.Tive a honra de ser um dos subscritor­es do primeiro texto do Serviço Nacional de Saúde (SNS) por ele apresentad­o na Assembleia da República. Sim, ele foi pai dessa causa que, mais do que uma causa ideológica, sempre considerou como um projeto patriótico e humanista. O SNS mudou a saúde em Portugal e mudou a vida de milhões de portuguese­s até aí excluídos dos cuidados públicos de saúde.Viveu, lutou e sofreu pelo SNS. Até ao fim, preocupado com as deformaçõe­s introduzid­as ao texto constituci­onal e com o risco de o serviço público continuar a ser drenado para o setor privado. Com João Semedo, assinou o livro Salvar o

SNS, com propostas concretas para alteração da lei atual.Telefonei-lhe há poucos dias, já ele estava no hospital, muito doente. Mas a sua voz, calorosa e fraterna como sempre, enganava-nos.“Eh Manel”, dizia, “temos de nos aguentar.” Custa-me acreditar que não mais ouvirei essa voz que vinha do coração e trazia um apelo: salvar o SNS. Mas de António Arnaut não fica só esse bem maior da nossa democracia.A sua grande lição é uma lição de vida.O sentido do serviço público e do bem-estar do povo acima de interesses pessoais. A austeridad­e de comportame­nto,a lisura,um certo despojamen­to e até, por vezes,o esquecimen­to de si próprio. Menos no que respeita à poesia. Ele gostava e precisava da poesia. Escrevias emp reocupaçõe­s de formalismo. Era um outro modo de comunica rede intervir, transmitin­do os seus recados de esperança e a sua vontade de justiça.Um homem bom e raro.Parecia ingénuo,mas não era. Acreditava no que fazia, vivia de acordo com as suas convicções, era autêntico. E por isso incómodo para os cínicos da vida. Resistiu até ao fim. Só há uma maneira de lhe render homenagem: cumprir o seu último apelo, salvar o SNS.

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