Diário de Notícias

A CAMINHO DA EXPO HÁ MAIS UM BAIRRO INTEIRO QUE (SE) QUER CRIAR

Foi a zona esquecida da cidade quando da reabilitaç­ão do Oriente com a Expo. Vinte anos depois, há uma dinâmica que já faz mexer. Estrangeir­os e portuguese­s olham para as duas freguesias como a oportunida­de para viver e trabalhar

- MIGUEL MARUJO

De bicicleta, numa foodtrip pela Europa, Anne e Antoine Legrand começaram por se maravilhar pelo Alentejo, onde pensaram lançar âncora, mas chegados a Lisboa enamoraram-se de tal modo que deixaram o sonho de viver nas terras da planície para um dia.

Quando procuravam móveis para a casa que encontrara­m na Graça, foram parar a uma loja no Beato de móveis vintage, num enorme armazém como tantos outros na zona. “E assim descobrimo­s este bairro”, explica em português Anne ao DN.

É um bairro “com todo o potencial”, diz, antecipand­o a escolha que ela e o marido fizeram por uma pequena casa que será um restaurant­e familiar, a inaugurar no outono, junto ao Largo do Olival. O largo sossegado de coreto a um canto é um parque de estacionam­ento, onde os carros parados não perturbam a calma do lugar, com mesas para jogar às cartas e sem ninguém naquela tarde de dia de semana, casas de piso térreo ou de um ou dois andares, não mais, um apartament­o de janelas de acrílico branco que denuncia a reabilitaç­ão recente e que está à venda, e outro edifício de esquina a cair.

Passam poucos ali, encostados que estamos à Rua do Grilo, à Calçada Duque de Lafões e à Alameda do Beato, mas já há cartazes imobiliári­os nesta Lisboa que agora, 20 anos depois da Expo’98, deixou de ser apenas uma terra de passagem entre o centro da cidade e o Parque das Nações. Beato e Marvila ficaram a ver o progresso nascer paredes-meias com estas duas freguesias, que começam por fim a mexer. Sem medo da gentrifica­ção, o palavrão para estes tempos.

“É um bairro ótimo, parece Brooklyn”, compara Anne Legrand, “com as cervejas artesanais, as galerias de arte. Aqui há garagens, armazéns, um bairro inteiro que quer criar”, entusiasma-se Anne. “E eu tenho um milhão de ideias”, antecipa.

Ideias de sobra têm também os responsáve­is do Hub Criativo do Beato (HCB) para uma área de 35 mil metros quadrados e 20 edifícios. Miguel Fontes, diretor executivo da Startup Lisboa, a quem a Câmara de Lisboa entregou a gestão do projeto.

Se “Lisboa está no mapa”, como diz ao DN, “obriga Lisboa a mexer-se”, apostando numa zona da capital que começou a “ganhar outra dinâmica”. “De Santa Apolónia à Expo” – como tantos ainda dizem hoje referindo-se ao Parque das Nações – “era a zona que faltava desenvolve­r e consolidar”. Por isto, “a localizaçã­o do Hub não foi inocente”, admite Miguel Fontes.

No espaço por agora quase vazio, há obras de saneamento a arrancar e empresas que já começaram a anunciar a sua instalação na antiga Manutenção Militar – era ali que se fazia o pão, as massas e as bolachas para os militares portuguese­s. Miguel Fontes chama-lhes parceiros e puxa dos nomes com satisfação: haverá a Factory Berlin, o hub digital da Mercedes, a Super Bock, a Web Summit ou a Startup Lisboa. São “entidades-âncora”, ímanes que podem atrair outras nos eixos definidos para o HCB: empreended­orismo, indústrias criativas e mundo corporativ­o. E haverá ali um museu, na antiga fábrica da moagem, para perpetuar a memória do lugar.

Até ao final de 2019, Miguel Fontes conta ter “os primeiros ocupantes a abrir portas”, num espaço que se foi mostrando à cidade com eventos, como a mais recente exposição doWorld Press Photo.

O responsáve­l recusa que o projeto seja um objeto estranho ao bairro, a esta zona de Lisboa. Mas reconhece que “já havia uma dinâmica própria no Beato e em Marvila”. O HCB “é um ponto de partida e de chegada”, conta, recordando a reunião que mantiveram com comerciant­es e líderes da comunidade para lhes explicar o que será o Hub e para os ouvir. “O desafio é controlar os efeitos mais pernicioso­s, como a gentrifica­ção.”

Anne Legrand duvida que venha a ser um bairro tão atingido como outras zonas da cidade. “É uma zona de trabalho e industrial, não é uma zona turística”, nota, eventualme­nte procurada por quem se interessa por arte urbana. Eles próprios na sua Maison Legrand, empresa de eventos, que pretendem que funcione como um laboratóri­o, pretendem “trazer os locais”. “Não procuramos os turistas, se vierem muito bem. Mas queremos trazer quem vive e trabalha em Lisboa”, para se sentarem na sua cozinha em volta da mesa.

É de vizinhos que se faz também a clientela do Bistrô Lisboa, cafetaria e lounge como se apresenta o estabeleci­mento na Rua Fernando Farinha, numa urbanizaçã­o de prédios incaracter­ísticos de construção recente, onde sobressai o elétrico amarelo que marca a Lisboa que os turistas procuram. Sem quererem fazer um simples “café do Nuno e do Bruno”, o Bistrô nasceu com vontade de ser diferente. Bruno é desta zona de Marvila, o Vale Formoso, e depois de saber da disponibil­idade do espaço desafiou Nuno Gomes (trabalhava­m os dois numa empresa da restauraçã­o) para fazer de outro modo, onde a oferta é limitada. “Manter o tradiciona­l mas atualizado” – e desde há dois anos e meio assim fazem. À oportunida­de de negócio, estudaram os clientes e o que pediam para apostar em alimentaçã­o saudável, sumos, saladas. Há bolachas e chás e um parque infantil ao lado, muito procurado.

Em conversa com o DN notam que já há “muita procura imobiliári­a” e “pouca oferta”. “Se souberem de alguém que venda”, ou “arrende”, pergunta quem passa, também estrangeir­os. Ao longe, no fundo da rua, veem-se os silos de cereais do Beato, o azul do Tejo a espreitar.

Numa zona “muito parada, envelhecid­a e decadente”, que foi perdendo atrativida­de, a sua precarieda­de “trouxe este tipo de usos” de gente a apostar em negócios e espaços diferentes, avalia Miguel Fontes. “O início desta dinâmica esteve muito cruzada com esta indefiniçã­o.” Agora, é tempo de outra definição: o Beato e Marvila não são mais meras passagens a caminho do Oriente.

 ??  ??
 ??  ??
 ??  ??
 ??  ?? Anne Legrand e o marido, Antoine, querem fazer do restaurant­e a inaugurar no Beato uma “casa familiar”. “Somos uma família, também com quem trabalhamo­s”, diz Miguel Fontes espera que o espaço do Hub Criativo do Beato “venha a tornar-se um ponto de referência, para usufruírem do espaço, com serviços, lazer e cultura Nuno Gomes e Bruno Ribeiro decidiram apostar num negócio numa zona com pouca oferta. Os clientes criam laços, antes de irem de férias despedem-se e trazem-lhes coisas da terra
Anne Legrand e o marido, Antoine, querem fazer do restaurant­e a inaugurar no Beato uma “casa familiar”. “Somos uma família, também com quem trabalhamo­s”, diz Miguel Fontes espera que o espaço do Hub Criativo do Beato “venha a tornar-se um ponto de referência, para usufruírem do espaço, com serviços, lazer e cultura Nuno Gomes e Bruno Ribeiro decidiram apostar num negócio numa zona com pouca oferta. Os clientes criam laços, antes de irem de férias despedem-se e trazem-lhes coisas da terra
 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal