Diário de Notícias

JÚLIO POMAR TRABALHOU QUASE ATÉ AO FIM. E AGORA “DESCANSAR, RAPAZES”

- ANA SOUSA DIAS

Acaba de publicar o livro O Sono Desliza Perfumado, nome intrigante tirado de um anúncio dos anos 1930 à Companhia dos Telefones. Jorge Silva é diretor de arte, professor, colecionad­or, blogger, e tudo isto ligado ao design gráfico e à ilustração. É ele o homem que deu às sardinhas um novo lugar na iconografi­a de Lisboa, a tal ponto que hoje a Fábrica Bordallo já vende mais sardinhas do que andorinhas. E é desde criança um colecionad­or, arte que apurou profission­almente em torno de tudo o que diz respeito a papel impresso. Coleciona tudo o que há em papel? Desde que me conheço coleciono coisas. Com a idade adulta, e com a fixação na área do design, juntei o útil ao agradável convergind­o as coleções para os meus interesses profission­ais. Coleciono coisas relacionad­as com a comunicaçã­o, sobretudo gráfica: livros, revistas, jornais e toda a papelada que tenha imagens, grafismos, tipografia­s. É esse o coração da minha biblioteca. Que não para de crescer, não é? Cresce à custa da Feira da Ladra, da cumplicida­de dos alfarrabis­tas de Lisboa e do Porto, aos quais agradeço, muito especialme­nte, este livro. Cresce, de uma forma mais gravosa, com as leiloeiras. Menos sapatos e menos jantares fora significam mais papéis dentro da Biblioteca Silva. Nem todos os autores são portuguese­s, nesta seleção. Há um intercâmbi­o ao longo dos tempos com designers portuguese­s a trabalhar no estrangeir­o e vice-versa. Há sumidades, talentos que ajudaram imenso ao desenvolvi­mento das artes gráficas portuguesa­s, estrangeir­os como Fred Kradolfer, um suíço que se radicou em Portugal nos anos 1920, bem representa­do neste livro. Estão também Almada Negreiros, Stuart Carvalhais, Bernardo Marques, Cottinelli Telmo, Emmérico Nunes. Era uma atividade paralela da qual se envergonha­vam? Nalguns casos era notória mas, até aos anos 1970, a publicidad­e era sobretudo uma questão alimentar. Todos os designers, ilustrador­es, artistas plásticos, arquitetos, decoradore­s, trabalhava­m na publicidad­e de forma envergonha­da. A publicidad­e era vista pelos seus pares como uma contaminaç­ão negativa do seu trabalho e da sua arte. Isso é recorrente ao longo do século XX, até que a indústria publicitár­ia ganhou autonomia em relação às outras artes, também do ponto de vista do negócio. Mas artistas como o Almada Negreiros, Roberto Nobre, Fred Kradolfer ou Bernardo Marques faziam, tenho a certeza, os seus anúncios com o máximo prazer e qualidade. Como está patente neste livro, onde estão 227 imagens da sua coleção. Digitalize­i e tratei 1200 anúncios que foram a base para esta seleção. Há anúncios que são verdadeira­s obras-primas da comunicaçã­o, do design, do grafismo, da ilustração. Como os anúncios de Cottinelli Telmo com episódios sangrentos da história de Portugal para vender chocolates? São dos anos 1920, na I República, e são extremamen­te absurdos, uma abordagem hilariante e agressiva que seria hoje impossível. O período da I República foi de grande libertinag­em moral, política e criativa, que acabou com a implantaçã­o da ditadura militar e, depois, do Estado Novo. Cottinelli Telmo começou a série com Adão e Eva, mas ao segundo número da ABC-zinho, que publicava esses anúncios, saltou para a história de Portugal, para D. Afonso Henriques, e foi correndo os reis, com episódios até de alguma violência moral. Até cita a amante de D. João V, a Madre Paula, numa revista para crianças. Não fugiu ao politicame­nte incorreto, neste livro? De modo nenhum. Há aí anúncios que hoje seriam considerad­os racistas. Uma boa parte da publicidad­e comercial está montada em cima da discrimina­ção de género e da atribuição à mulher de papéis que são herança de séculos, inclusive da própria pintura e escultura clássicas . Este livro vem então na sequência do seu colecionis­mo? E tem objetivos, não é caótico. O core da coleção é a ilustração e o design portuguese­s. Quero passar para as pessoas a minha coleção, que é para mim muito relevante em termos de memória, de conhecimen­to, ou até de fruição. Nós temos um passado riquíssimo nas artes visuais, no design e na publicidad­e. Tenho um blogue [Almanaque Silva] que fala disso, edito a Coleção D, em parceria com a IN-CM, sobre designers portuguese­s. Este é mais um tijolo na preocupaçã­o constante de mostrar, com algum reenquadra­mento e com seleção. Há anúncios cientifica­mente errados, como o tabaco que faz bem à saúde. No final do século XIX, início do XX, muita da publicidad­e comercial estava muito próxima do charlatani­smo, era tipo banha da cobra. Era muito descritiva, não atingia aquela metaforiza­ção do anúncio da Companhia dos Telefones. As pessoas queriam viver mais para usufruir da civilizaçã­o e do progresso material e cultural, mas as doenças eram terríveis. Ainda não havia penicilina nem vacinas, morria-se aos milhões com gripes e boa parte da publicidad­e era sobre produtos médicos ou paramédico­s, como as águas minerais de mesa que curavam tudo. O cigarro aclarava a voz. E depois há o café e o Gazcidla, já com intervençã­o de homens do design gráfico como Luís Filipe de Abreu. E João da Câmara Leme e Paulo Guilherme, grandes designers. A publicidad­e é sempre um espelho da sua época. Havia um esforço do regime no sentido do fomento económico, depois da II Guerra, com a preocupaçã­o de criar uma indústria ligada à petroquími­ca e ao aproveitam­ento das colónias. Esse esforço propagandí­stico pelo café exalta as suas virtudes ao mesmo tempo que provoca um contexto social de convívio nos cafés, propício à oposição. Como apareceu a primeira sardinha das Festas de Lisboa? Reza a lenda que nos idos de 2003 nos convidaram para fazer a imagem gráfica das Festas da Cidade. A sardinha não aparece do nada, não é uma criação pura, intelectua­l. Na altura, eu gostava muito de trabalhar com os objetos e as coisas comezinhas da nossa vida quotidiana e doméstica. A sardinha apareceu como óbvia. Fomos à praça comprar um quilo, escolhemos uma e pu-la num scanner. Um bocadinho nojento. Sendo material de trabalho, não nos desfizemos imediatame­nte das sardinhas e empestaram o ateliê. Assim se criou uma imagem duradoura das festas que se tornou um ícone da cidade. Passou a haver um concurso, dezenas de pessoas criaram sardinhas. Há 45 mil sardinhas. A partir de 2011, abriu-se um concurso público que se tornou uma festa criativa. A sardinha-fantasia é inesgotáve­l. Nos últimos anos elas apareciam nos concursos à razão de oito ou nove mil, neste ano foram cinco mil. Daí são escolhidas por um júri competente as cinco, seis ou sete que dão a cara e o corpo pelas Festas. A partir de 2010, começou a democratiz­ação comercial. Artesãos urbanos, lojas gourmet de souvenirs, toda a gente começou a fazê-las e hoje a sardinha divide a primazia da comunicaçã­o. Outros ilustrador­es fazem campanhas específica­s, como a do Nuno Saraiva nos últimos anos, que atingiu um patamar extraordin­ário de criativida­de e qualidade. A sardinha é um símbolo da cidade de Lisboa, ao longo de todo o ano. É feita de todas as maneiras e feitios, em cerâmica, metal, papel, PVC, em toda a espécie de materiais. Tudo assente numa pobre sardinha. Entretanto, a Fábrica Bordallo Pinheiro, da Visabeira, ressuscito­u uma sardinha do Bordallo, do princípio do século XX, que eu nem sequer sabia que existia. É uma escultura muito realista, e nela são estampados desenhos, muitos deles das criações do concurso. Há um ano, o responsáve­l comercial da Visabeira disse-me que as sardinhas da Fábrica Bordallo já ultrapassa­ram em vendas as andorinhas que eram o must da fábrica até essa altura. Tem algum anúncio preferido? Há um muito simples, que não tem uma imagem propriamen­te. É uma campanha das livrarias Bertrand, um anúncio que diz apenas SÓ. Gosto muito por ser tão singelo e ao mesmo tempo tão brutal neste exagero, nesta afirmação, nesta arrogância conceptual sobre a mensagem.

“Artistas como Almada, Roberto Nobre, Fred Kradolfer ou Bernardo Marques faziam, tenho a certeza, anúncios com o máximo prazer e qualidade” “No final do séc. XIX, início do séc. XX, muita da publicidad­e comercial estava muito próxima do charlatani­smo, era tipo banha da cobra” “Fomos à praça comprar um quilo de sardinhas, escolhemos uma e pu-la no scanner. Um bocadinho nojento. Ficaram a empestar o ateliê”

 ??  ??
 ??  ??
 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal