Diário de Notícias

No mundo da banca, onde acaba e começa o conflito de interesses?

O BCE pediu à BlackRock para testar os bancos. Na Grécia, pela primeira vez, isso foi considerad­o “conflito de interesses”

- PAULO PENA Investigat­e Europe

Desde 2011, o Banco Central Europeu e as autoridade­s supervisor­as de alguns países da zona euro recorrem repetidame­nte a especialis­tas da BlackRock, um grupo financeiro americano que é o maior administra­dor de ativos do mundo. A BlackRock é, também, acionista de referência na maioria dos grandes bancos europeus. Além do BCE, os bancos centrais de Holanda, Espanha, Irlanda, Chipre e Grécia também contratara­m os serviços de consultori­a da BlackRock Solutions.

Em Portugal não há qualquer registo de serviços de consultori­a da BlackRock junto do governo ou do Banco de Portugal. Há até (ver caixa) um conflito judicial entre a empresa e o regulador bancário. Mas, como no resto da Europa, o gigante norte-americano é acionista dos principais bancos desde a crise (BCP, Banif indiretame­nte através do Santander, BPI, através do CaixaBank e, no passado, também o Banco Espírito Santo).

Os responsáve­is europeus, até agora, sempre rejeitaram a alegação de que estes conselheir­os externos estariam a trabalhar numa situação de conflito de interesses na supervisão bancária oficial, porque o seu empregador também é o principal acionista dos bancos avaliados. O BCE, por exemplo, assegurou que os consultore­s da BlackRock tinham “garantias contratuai­s” de que operariam estritamen­te separados dos demais negócios do grupo. Mas agora, pela primeira vez, uma das instituiçõ­es envolvidas, o Banco Central da Grécia, reconheceu que tal sepa- ração não pode ser garantida. Em resposta às perguntas do Investigat­e Europe, o porta-voz do governador do banco central grego escreveu que aquela instituiçã­o reguladora excluiu explicitam­ente os consultore­s da BlackRock de participar­em nos “testes de stress” realizados em 2015 para os quatro maiores bancos gregos “devido a potenciais conflitos de interesses”.

Até então, no entanto, a autoridade supervisor­a de Atenas já havia contratado os consultore­s da BlackRock. De acordo com as instruções dos ministros das Finanças do euro, contratou especialis­tas do gigante financeiro dos EUA várias vezes desde 2011, sem concurso público, para a realização de auditorias aos balanços dos bancos.“À tarde, fomos à BlackRock vender as nossas ações e, ao mesmo tempo, outros funcionári­os da BlackRock vieram verificar os nossos registos”, relata Michael Masourakis, ex-economista-chefe do Alpha Bank grego. “Claro que não eram as mesmas pessoas. Mas eles poderão ter-se encontrado à noite para uma bebida?” Ninguém pode saber, responde Masourakis à sua própria pergunta. Acesso a dados sensíveis Este banqueiro diz não acreditar na possibilid­ade de a BlackRock arriscar a sua reputação para obter lucros de curto prazo com os dados recebidos. Mas é claro que essa informação “flui ao nível superior”, dentro da empresa, suspeita Masourakis – um risco que o governador do banco central grego, Giannis Stournaras, não equacionou quando contratou a BlackRock para testar a vulnerabil­idade dos bancos gregos, um assunto da máxima importânci­a para o futuro da economia da país.

O BCE, por outro lado, não hesitou em dar à BlackRock acesso a dados sensíveis (semelhante­s aos que lhes foram negados na Grécia), durante os vários meses em que a empresa esteve à frente dos testes de stress europeus aos 39 maiores bancos da zona euro, em 2016. BCE não comenta Como pode haver uma avaliação tão diferente do possível conflito de interesses dentro do sistema de regulação bancária do euro? O BCE “não quer comentar”, explicou um porta-voz da instituiçã­o de Frankfurt, a pedido do Investigat­e Europe. O BCE também prefere manter em segredo as despesas com os consultore­s externos, assim como não revela o número de funcionári­os da BlackRock que estiveram a trabalhar na sede do BCE.

Especialis­tas independen­tes, por outro lado, consideram que a integração do gigante financeiro americano na supervisão bancária europeia é altamente problemáti­ca. Martin Hellwig, ex-chefe da Comissão de Monopólio e diretor do Instituto Max Planck de Serviços Públicos, na Alemanha, adverte: “É fundamenta­lmente errado que uma empresa privada seja encarregad­a de uma tarefa soberana.” Além disso, o acesso exclusivo à mais alta autoridade de supervisão da Europa cria “uma enorme vantagem estratégic­a sobre todos os concorrent­es”, diz Hans-Peter Burghof, professor de Economia Bancária na Universida­de de Hohenheim. A BlackRock não quis comentar a existência de possíveis conflitos de interesse no seu negócio de consultori­a. Com Crina Boros, Elisa Simantke, Harald Schumann,Jordan Pouille,Nikolas Leontopoul­os,Maria Maggiore eWojciech Ciesla Investigat­e Europe é um projeto iniciado em setembro de 2016, que junta nove jornalista­s de oito países europeus. Financiado pelas fundações Hans Böckler Stiftung, Düsseldorf, Stiftung Hübner und Kennedy, Kassel, Fritt Ord, Oslo, Rudolf-Augstein-Stiftung, Hamburgo, e Open Society Initiative for Europe, Barcelona, destina-se a trabalhar temas de interesse europeu.

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O BCE não comenta a divergênci­a com o banco central grego sobre a BlackRock

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