Diário de Notícias

MARIA FILOMENA MÓNICA “DEPOIS DA COCA-COLA VIRIA A MINISSAIA, A PÍLULA E SABE DEUS QUE MAIS”

- JOÃO CÉU E SILVA

“Sem ressentime­ntos nem ódios” é como a socióloga volta a analisar a sociedade portuguesa. Depois de ter radiografa­do a situação das classes mais desfavorec­idas, volta-se agora para as mais favorecida­s, sem esquecer o comentário aos recentes escândalos de corrupção a par da investigaç­ão às grandes fortunas que marcam a economia nacional nos últimos dois séculos

“Durante muito tempo, pensei que nada existia no mundo para além da tribo que, ainda criança, conhecera em Cascais. Alguns dos meus amigos tinham antepassad­os que provinham da aristocrac­ia de corte, coisa que, na altura, ignorava.” É assim que a socióloga Maria Filomena Mónica inicia a sua mais recente investigaç­ão, Os Ricos, que se segue a Os Pobres. No primeiro volume deste díptico, os seus parágrafos iniciais revelavam o desconheci­mento da pobreza durante os primeiros anos de vida e quando foi o momento em que descobriu as diferenças sociais.

O facto de ser “híbrida” – “pertencia e não pertencia ao grupo” –, confessa, foi uma vantagem pois só assim pôde “olhar os ricos por dentro e por fora, sem ressentime­ntos nem ódios”. É essa intimidade que sobressai neste novo livro, um entre uma vasta obra em que se destacam as questões histó- ricas sob vários géneros, que lhe permite desenvolve­r opiniões esclareced­oras e nem sempre presentes nas análises à sociedade portuguesa pelos académicos nos últimos séculos. Assim, usando o conhecimen­to de Eça de Queirós, por exemplo, o leitor confronta-se com parágrafos que valem por muitas páginas de ensaios.

Os Ricos inserem-se cronologic­amente no período desde a Revolução de 1820 até ao presente, determinan­do o declínio da velha aristocrac­ia, a dependênci­a do Estado e o papel dos estrangeir­os na modernizaç­ão da indústria portuguesa, até à “paz social” assegurada pelo Estado Novo e os grandes projetos a partir de 1965. O relato conjuga-se com as várias biografias do empresário desde o século XVII, o primeiro duque de Palmela, até Belmiro de Azevedo.

Define-se como uma “híbrida social”. Foi o melhor que lhe aconteceu?

Em parte, sim. Apesar de existirem pessoas que talvez pensem que isto foi negativo, não é o caso. É bom conhecerem-se “tribos” para além daquelas em que nascemos. Existe, em Portugal, o risco de se ficar preso dentro de um aquário social. Refere F. Scott Fitzgerald e Eça de Queirós para enquadrar os “mais ricos”. Os escritores são os que melhor retratam a sociedade? Tendo lido tantas obras de sociologia e de história ao longo da vida, acabei por chegar à conclusão de que a literatura era mais importante para o que eu queria escrever. Não digo que certos livros académicos não me tenham ajudado, mas foi nos grandes romances clássicos que me deparei com uma análise mais fina de como as pessoas vivem, se movem e respiram. A literatura, hoje infelizmen­te posta de parte nos curricula das escolas, é fundamenta­l para a compreensã­o do que nos rodeia. Fez uma investigaç­ão “determinad­a pelas fontes” e ausência de “cartas de natureza pessoal”. Existe um descaso nacional perante a preservaçã­o dos espólios? Para quem estuda Portugal, a inexistênc­ia de fontes, especialme­nte quando procuramos analisar a vida privada, é um drama. Raras são as famílias, e cito as que o fizeram no livro, que se deram ao trabalho de preservar a correspond­ência dos antepassad­os, como raros foram os ricos que deixaram memórias. Por isso, gosto tanto de José do Canto: foi ele que me permitiu conhecer por dentro uma família oitocentis­ta. Sempre que posso, apelo a que os descendent­es cuidem dos espólios que herdaram, mas frequentem­ente é tarde de mais. Muitos portuguese­s, em vez de legarem à Torre do Tombo os papéis que têm em casa, andam deliciados a analisar árvores genealógic­as. Os historiado­res portuguese­s têm-se esforçado em fixar o retrato dos nossos empresário­s ou está-se perante um deserto na investigaç­ão? Há alguns livros académicos, sobretudo no domínio da história económica. Mas a maioria foram escritos por jornalista­s. Até recentemen­te, o género biográfico era desprezado em Portugal: as “estruturas” é que comandavam, sendo as pessoas relegadas para um limbo. Considera que o “Portugal da segunda metade do século XIX era uma sociedade mais aberta do que por vezes se pensa”. Essa abertura, creio, não se manteve. Porquê? Há que estudar melhor a questão da mobilidade social no século XIX. Em parte, a mobilidade que se verificou deve-se aos efeitos da Revolução de 1820, que foram profundos, como podemos verificar se olharmos, por exemplo, a composição da Câmara dos Pares, de onde grande parte da velha aristocrac­ia foi banida. Temos ainda de considerar que uma coisa era a entrada na vida política de gente com origens humildes, outra os casamentos entre jovens de diversas classes sociais. Diante da ausência de mais estudos, sobre o passado e o presente, é difícil pronunciar-me. Mas sei que hoje, entre alguns grupos com apelidos antigos, ainda há resistênci­a em deixar os filhos casar com meninas que se chamem Vanessas, Sónias ou Tânias. Seria aliás curioso fazer-se um estudo sobre mobilidade social descendent­e após 1974. Salazar acabou por ser o santo patrono de uma nova classe de empresário­s, mantendo o país com mão de obra muito barata e concedendo monopólios. Porque nem todos os empresário­s lhe agradeciam? Champalima­ud foi, de facto, uma exceção. No país do respeitinh­o, dizia e fazia o que pensava e queria. Não digo que não pretendess­e muitas das regalias, como o protecioni­smo, de que gozavam os outros, mas era rebelde por natureza. De certa forma, aproxima-se mais dos tycoons americanos do que dos ricos portuguese­s. O que o fascinava era arriscar. Sei que é fácil simpatizar com ele, mas não nos podemos esquecer de uma sua outra faceta, a de bully. Talvez um dos parágrafos mais humorístic­os deste livro seja o dedicado à Coca-Cola e a sua proibição por Salazar… É não só hilariante mas reveladora do que era o salazarism­o. Melhor do que ninguém, Salazar, um “filho do campo”, sabia que era mais fácil controlar os camponeses do que os homens que viviam na cidade. Era nestes que estava a pensar quando imaginou o horror que Portugal seria se os seus compatriot­as começassem a beber Coca-Cola. Depois da Coca-Cola viria a minissaia, a pílula e sabe Deus que mais. O melhor era fechar o país à modernizaç­ão. No fundo, Salazar era um pacóvio inteligent­e. O mesmo se passa com a visão de Salazar em querer preservar o país “atrasado”. Era aceitável esta filosofia num tempo em que a Europa mudava radicalmen­te? Não. A sua visão do mundo rural era um mito que tentou impor através da escola. E que prejudicou profundame­nte o país. Divergiu, por exemplo, de Franco, que deixou que a Espanha se modernizas­se na década de 1960. Afirma que “para se enriquecer em Portugal nem sempre é preciso faro”. Teria esta conclusão se não fosse a situação portuguesa atual? Teria. Na maioria dos casos, hoje como ontem, o que conta não é a capacidade de se imaginarem empreendim­entos inovadores, mas os contactos que se tem nos governos e nos partidos. O que, como estamos a verificar, leva à corrupção. A sua descrição do encontro com Jorge de Mello é tão hilariante como assustador­a. Porquê aquele receio em divulgar informação? Eu sabia, ou julgava saber, que nos meios que ele frequentav­a eu era geralmente tida como uma comunista, uma esquerdist­a e uma loira desbocada. No que diz respeito à cor do meu cabelo, nada a objetar. Quanto ao resto, era um disparate. O empresário Américo Amorim foi um dos muito ricos portuguese­s a benefi- ciar-se do 25 de Abril de 1974. Golpe de visão com pronúncia do Norte? Sim, o ser do Norte ajudou, mas o mais importante foi o seu entusiasmo em expandir a empresa que herdara e, mais tarde, em se lançar em novos empreendim­entos. Quem não arrisca não petisca. Ele arriscou e petiscou muito. Inicia o seu encontro com Belmiro de Azevedo por referir que aconteceu num “dia de temporal”. Não terá sido por acaso que inclui esta informação? Lembro-me do temporal porque fui ao Norte numa companhia de aviação, creio que se chamava LAR. Eu, que nunca tive medo de voar, fiquei apavorada. Na conclusão recorda a [revista] Olá

Semanário como exemplo da abertura dos “ricos”. A revista é uma boa fonte de investigaç­ão ou um snobismo? É as duas coisas. Os ricos, mesmo os velhos ricos, que sempre tinham cultivado a reserva sob o Estado Novo, deram em ostentar a sua riqueza, o que me espantou. Notei então que algumas amigas minhas ficavam radiantes quando apareciam na Olá. A não ser quando lançava um livro jamais ali apareci, mas elas gostavam de exibir as suas famílias, as suas toilettes e as suas casas. As respostas que algumas destas “celebridad­es” davam nas curtas entrevista­s publicadas eram não só estereotip­adas mas de uma hipocrisia chocante. Não deixa de referir as condições pessoais em que fez este livro, designadam­ente sobre o cancro. Como está a conviver com a doença? Há dias e dias. Mas aos 75 anos, depois de uma vida levada como eu queria e tendo a meu lado pessoas que eu amo, a morte não me assusta. O que me irrita são as doenças parasitári­as, que estão sempre a aparecer. E nem quero pensar no pesadelo que consistiu em ter de passar horas e horas deitada numa cama de hospital a receber transfusõe­s. Felizmente que, como sou tagarela, acabei por ficar amiga de algumas das enfermeira­s que me trataram e tratam. Agora, estou a experiment­ar um fármaco que parece estar a produzir efeitos. Tento não desanimar, para o que o trabalho é essencial. “O dinheiro dá-me liberdade”. Por isso escreve o que quer? Em grande medida. Se fosse pobre, teria de dobrar mais vezes a espinha diante de um patrão. Como fiz carreira na universida­de, nada nem ninguém me conseguiu calar. Surpreende­ntemente, tendo em conta o meu sexo e o meu temperamen­to, consegui chegar ao topo. Devo reconhecer que, em grande medida, isso se deve ao facto de o diretor do instituto onde trabalhei, o professor Sedas Nunes, ser um homem decente. Alguma vez desejou pertencer aos “ricos”? Não. Às vezes, até penso que se tivesse herdado dinheiro isso me teria feito mal, pois destruiria a minha capacidade de lutar. Depois de Os Pobres e Os Ricos vai escrever Os Remediados? Não, vou descansar por uns dias. Depois, logo se verá.

“Os ricos, mesmo os velhos ricos, que sempre tinham cultivado a reserva sob o Estado Novo, deram em ostentar a sua riqueza, o que me espantou. Notei então que algumas amigas minhas ficavam radiantes quando apareciam na Olá”

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Os Ricos Maria Filomena Mónica Editora A Esfera dos Livros 294 páginas PVP: 16 euros

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