O construtor, a padeira, o segurança e as questões que os afligem
Nas horas que antecedem a abertura de portas do Congresso do PS há um mundo de gente a trabalhar para que os socialistas possam discutir o futuro. Não têm voz no palco, mas têm ideias sobre aquilo que o país precisa de discutir. Esta é a primeira reportagem de uma série de quatro sobre o encontro que não se vê Ziiiiim pum. Ziiiiim pum. É noite cerrada e estão dez homens a trabalhar no interior do ExpoSalão da Batalha, onde hoje arranca o XXII Congresso do Partido Socialista. Estão a montar as mesas para os congressistas numa cadência perfeita: primeiro arrastam os tampos de madeira sobre uma estrutura metálica, depois pousam-nos com estrondo sobre os encaixes que os vão segurar. Ziiiiim pum. Ziiiiim pum. “Há mais de 20 anos que faço congressos e campanhas do PS”, diz Marco Carvalho, 43. “Mas tenho sérias dúvidas de que continue outros 20 a fazer isso. E se calhar era isto que o país devia estar a discutir.”
Na madrugada que antecede a abertura de portas há um mundo de gente a trabalhar para que os militantes socialistas possam pensar o país e os próximos anos de governação. Nenhuma destas pessoas vai subir ao palco, ninguém aqui vai discursar ou influenciar o mundo. Mas isso não quer dizer que não estejam preocupadas. Estão.
Marco, portuense, trouxe o filho pela primeira vez para o ajudar nas montagens. Daniel tem 21, começou a tirar Direito na universidade, mas há um par de anos decidiu desistir. “Na geração dos meus pais ir para a faculdade era importante, mas vejo os meus colegas hoje a trabalhar em caixas de supermercado.” Ele instala reclames luminosos, é ofício que em meses bons dá dois mil euros limpos.
Agora veio fazer este biscate, são mais uns trocos na carteira. “A época dos contratos de trabalho acabou”, diz o rapaz e o pai anui enquanto se agarra a outro tampo de mesa. Ziiiiim pum. Ziiiiim pum. Marco larga a tábua mas pega na palavra. “Como sociedade devíamos estar preocupados com o futuro do trabalho, não devíamos? É que não vejo ninguém a parar para pensar nisto.”
Por um lado há a tecnologia – e essa vai fazer que trabalhos como o do pai passem a ser executados por máquinas. Depois há a desvalorização do conhecimento e a precariedade que continua a ser o fado dos que estudaram. “Como é que os portugueses vão ganhar a vida daqui a uma década ou duas?”, pergunta o progenitor enquanto se agarra a outro tampo de mesa. Ziiiiim pum. Ziiiiim pum.
Pão, pão, queijo, queijo A madrugada inteira passou-a Fátima Neves a levar pão ao forno para alimentar os congressistas que começam hoje a chegar à Batalha. São mais 1500 carcaças além das 300 que coze diariamente no seu restaurante (A Grelha, em Leiria). No início do ano ganhou a concessão do bar do ExpoSalão e agora tem uma prova de fogo. É preciso que não falte comida a quem decide o país.
Para este fim de semana contratou oito novos empregados e orgulha-se de dizer que a todos ofereceu contrato de trabalho, ordenados acima da média, descontos em dia. “Tenho uma casa aberta há 19 anos e quase todos estão comigo desde o início. São empenhados. Sabe porquê? Porque são valorizados e tratados com dignidade.”
Era isto que Fátima gostava de ver discutido no palanque: a distribuição da riqueza. “Sou empresária e custa-me muito entender o nível de disparidade salarial neste país. Depois de uma crise terrível na restauração, o turismo trouxe-nos agora um balão de oxigénio. No verão dei prémios aos meus funcionários, repartindo os lucros. Guardar tudo para mim seria absolutamente injusto.”
É por isso que não percebe como um dos países ocidentais onde o índice de desigualdade é maior não está obcecado em combater essa chaga social. “Criem-se leis, impeçam-se os administradores de ganhar dez vezes mais do que os funcionários”, vaticina ao mesmo tempo que compõe nova fornada. Para a padeira do congresso, a expectativa do fim de semana tem de ser a do país: pão para todos.
Um país mesmo país Já a noite vai avançada quando toda a gente abandona o pavilhão. Carlos Soledade, 41 anos, é o único que fica para trás – e ali permanecerá toda a noite a guardar o forte. É o segurança privado do ExpoSalão. “A única coisa que tenho de fazer é garantir que, quando os congressistas chegarem, continua tudo direitinho para eles poderem tratar das coisas deles.”
Cresceu no bairro J de Chelas mas há mais de duas décadas que vive numa aldeia de Santarém. “Fui militar durante dez anos, estive em Timor, amo Portugal mas estou muito preocupado com ele. É que nós estamos a deixar de ter um país para ter só meio.”
Ser segurança não estava nos planos, o que ele queria mesmo era comprar uns hectares de terreno e cultivá-los. “Mas como é que eu posso fazer isso quando não há escoamento, quando a agricultura vive uma ditadura de preços imposta pelos supermercados, quando o Estado continua a retirar os serviços das zonas que mais precisam deles?”
Diz que os incêndios do ano passado foram uma lição, sim, mas que este é o tempo da oportunidade. De pensar no território e geri-lo melhor. “Para que serve um congresso?”, pergunta o homem com a conversa avançada noite dentro. “É para pensar como é que se faz de um país um país, não é?”
O futuro do trabalho, a distribuição da riqueza e a gestão do território. São estas as preocupações de quem passou a madrugada a montar o congresso