Diário de Notícias

Marco Martins ouviu as histórias dos emigrantes portuguese­s

Espetáculo. A partir do trabalho com a comunidade portuguesa em Yarmouth, estreia-se hoje, no Reino Unido, Provisiona­l Figures

- MARIA JOÃO CAETANO

“Fui contratada em Portugal. Disseram-nos que íamos embalar fiambre para uma espécie de Algarve inglês. Quando chegamos cá vimos que era tudo diferente. Fomos instalados em pensões. Havia brigas constantem­ente. Roubavam a comida do frigorífic­o.” Isto é o que conta Carmo, emigrante portuguesa em Great Yarmouth, uma vila na costa de Norfolk, na Inglaterra. Maria do Carmo foi para lá, como todos os outros, para trabalhar. “Na fábrica, começávamo­s às seis. Eu levantava-me antes das quatro. No primeiro dia, abri as cortinas de plástico e só vi perus pendurados. Era um cheiro intenso a merda e a sangue. Comecei a vomitar e fugi. O cheiro entranhava-se na nossa pele. Nunca saía. Aquilo parecia o inferno.”

Great Yarmouth não é “um Algarve inglês”, isso foi algo que o encenador Marco Martins percebeu logo, da primeira vez que lá esteve, há cerca de dois anos e meio, respondend­o ao convite do Norfolfk & Norwich Festival. “Desafiaram-me a trabalhar com a comunidade portuguesa de Yarmouth”, conta Marco Martins. “É uma grande comunidade, cerca de dez mil pessoas, sobretudo pessoas que tinham vindo na altura da crise de 2009 para trabalhar nas fábricas de transforma­ção animal, de perus e galinhas. Outras que já tinham vindo antes. É uma realidade muito dura e interessou-me logo. Havia aqui uma fatia da nossa história recente que se poderia ver ali.”

Na primeira semana que lá esteve, Marco Martins sentou-se no café de uma associação portuguesa, a Heróis do Mar, e começou a falar com pessoas, tentando perceber como era a vida ali. Fez 150 entrevista­s. “Foi muito difícil convocar a comunidade, é muito fechada. E depois com o brexit as pessoas começaram a ter medo de falar”, conta. Apesar disso, reuniu um grupo de pessoas que aceitaram participar no projeto. Viajava de dois em dois meses, levando consigo alguns colaborado­res para orientarem workshops – os atores Nuno Lopes e Sara Carinhas, os coreógrafo­s Romeu Runa eVictor Hugo Pontes. O fotógrafo André Cepeda acompanhou o processo, assim como os escritores Isabela Figueiredo e Gonçalo M. Tavares.

A dificuldad­e de manter o grupo de trabalho levou o encenador a abrir a criação a pessoas de outras nacionalid­ades e comunidade­s, incluindo pessoas que já trabalhara­m nas fábricas e agora estão desemprega­das. Aos poucos, o espetáculo deixou de ser sobre a emigração portuguesa para ser sobre aquela localidade que já foi uma das grandes estâncias balneares inglesas e agora é só uma vila decadente. Este é um espetáculo sobre o trabalho duríssimo destas pessoas e sobre a relação do homem com os animais (e sobre os homens que matam os animais para sobreviver). No palco, nove intérprete­s: seis homens e três mulheres, três portuguese­s, quatro ingleses, um esloveno e um moçambican­o. Cada um fala na língua em que se sente mais confortáve­l. Cada um conta a sua história. A realidade tornada ficção.

Apesar dessa mudança de foco, o projeto manteve o seu título, Provisiona­l Figures, que é a denominaçã­o dada em estudos estatístic­os a todos os emigrantes com uma situação indefinida ou provisória que trabalham no Reino Unido. Somos todos “números provisório­s”.

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O espetáculo integra pessoas da comunidade de Yarmouth sem experiênci­a de palco

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