Diário de Notícias

Aos 26 anos o céu caiu-lhe em cima, mas Samuel nunca desistiu

Samuel Natário tem 32 anos e há seis um quisto no cérebro roubou-lhe a visão. Isso não o travou, reaprendeu a viver no Centro de Reabilitaç­ão Nossa Senhora dos Anjos, mudou de funções dentro da Autoeuropa, começou uma licenciatu­ra e pelo meio tem de arran

- ANA BELA FERREIRA

Nos corredores daVolkswag­en Autoeuropa, Samuel Natário seria apenas mais um dos muitos trabalhado­res não fossem as atenções que Yolo continua a atrair. Yolo é um cão-guia – treinado nos EUA e que, por isso, recebe ordens em inglês –, mas apesar de todas as festas que lhe fazem é a história do dono que torna Samuel a verdadeira estrela.

Aos 26 anos, cinco depois de ter começado a trabalhar na linha de produção da fábrica, um problema de saúde tirou-lhe a visão e obrigou-o a reinventar toda a sua rotina. A tarefa foi difícil, reconhece Samuel, mas não o fez desistir dos seus sonhos ou, como o próprio prefere, “objetivos”. Ainda que tenham vindo a mudar ao longo do tempo. Quando chegou à Autoeuropa, em setembro de 2007, Samuel começou na linha de produção “das portas e do capô das viaturas”, primeiro no modelo Eos, depois no Scirocco. Hoje trabalha no Departamen­to de Comunicaçã­o, Sustentabi­lidade e Imagem Corporativ­a da empresa. E, no futuro próximo, espera poder dar uso ao curso de Serviço Social que está a tirar no ISCTE – embora ainda não saiba se no contexto empresaria­l se junto de instituiçõ­es sociais. O momento de viragem Foi em novembro de 2012 que Samuel Natário começou a detetar que a sua visão estava a piorar. Depois de uma consulta com o oftalmolog­ista, resolveu mudar a graduação das lentes, mas quando foi buscar os óculos novos (apenas dez dias depois) percebeu que também já estavam desatualiz­ados. “Ia a descer as escadas, à saída, e percebi logo”, recorda.

Nas semanas seguintes dedicou-se a tentar encontrar a causa do problema e, um mês depois, o jovem, então com 26 anos, descobriu que tinha um quisto no cérebro que lhe tinha atrofiado o nervo ótico. Foi operado de urgência quando já tinha perdido a visão do olho direito e estava a perder a do esquerdo. Ao acordar da cirurgia apercebeu-se de que tinha cegado.

“Não foi fácil, tive aquele processo de luto. Tive uns seis meses complicado­s porque perdi um sentido. Depois, com mais médicos, mais opiniões, ao

fim de um ano, tive um médico que me disse: ‘Tens de perceber que o céu já te caiu em cima, já te aconteceu o pior, logo o melhor que tens a fazer é aprender a viver assim’.” Foram palavras duras, mas das quais Samuel estava a precisar, admite, porque ganhou o “estímulo de ter de fazer alguma coisa”.

Foi aí que chegou ao Centro de Reabilitaç­ão Nossa Senhora dos Anjos, da Santa Casa da Misericórd­ia de Lisboa. Foram três meses de reabilitaç­ão e mais seis de pós-reabilitaç­ão: “Foi um ano letivo, mais ou menos.”

Nesta casa, junto a Santa Apolónia, adultos de todo o país, das ilhas e dos PALOP (Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa) aprendem a viver com a cegueira adquirida. Ou seja, todos eles, como Samuel, deixaram de ver já na idade adulta.

Por isso, quando aqui chegam, os utentes passam por “diferentes fases, do questionam­ento (‘porquê a mim?’), depois por uma fase de revolta, de angústia, de tristeza”, aponta a diretora do centro, Isabel Pragana. “Em termos emocionais e psicológic­os o impacto é de facto forte” para alguém que perde a visão. Regra geral, todos ultrapassa­m esses momentos até ao final do programa que é desenhado especifica­mente para cada um. E há também quem chegue ao centro muito focado no seu objetivo de reabilitaç­ão, sublinha a responsáve­l. Era esse o estado de espírito de Samuel.

No antigo palacete lisboeta reaprendem a utilizar computador­es, máquinas multibanco, a contar dinheiro, a coser botões ou mesmo a usar uma máquina de costura, passar a ferro, escolher a roupa, cozinhar, ir ao supermerca­do. No fundo, “a serem autónomos”, como descreve Isabel Pragana.

Entre as principais dificuldad­es na aprendizag­em estão o Braile e a orientação e mobilidade. Não é só a ideia de andarem sozinhos na rua, é também “o assumir da bengala, pelo peso social que esta ferramenta tem nem sempre é fácil”, admite a diretora. Há pouco tempo no cargo – chegou em fevereiro –, não conviveu com Samuel durante a reabilitaç­ão, em 2014, mas conhece-o bem. Recentemen­te, Samuel fez aqui um estágio a propósito da sua licenciatu­ra e espera voltar em breve.

De resto, todos o conhecem. A ele e ao Yolo, que se movimenta por estes corredores de tetos baixos com a familiarid­ade de estar em casa. O estudante de Serviço Social preferiu optar pelo uso de um cão-guia em vez da bengala. Neste caso, é Yolo que “procura os obstáculos, facilitand­o a deslocação”.

A grande ajuda é também “um segundo filho” para Samuel. “É preciso ter trabalho para conseguir sustentar este encargo.” Ainda assim, a escolha acabou por ser natural. “Gosto de cães, iria regressar ao trabalho e depois de dois ou três meses a pensar acabou por ser a escolha natural.”

A resposta não é imediata em Portugal, mas a escola que existe em Mortágua tem um protocolo com uma escola americana e Yolo acabou por vir do outro lado do Atlântico. Samuel foi aos EUA fazer uma formação de duas semanas e depois fez outra nos percursos do dia-a-dia. As ordens são dadas em inglês – daí o sit, up ou follow que ouvimos durante a conversa –, mas Samuel garante que Yolo é já um cão bilingue. “Ele entende tudo o que dizemos. Não é o que dizemos, é como dizemos.” “O pai não vê, mas percebe tudo” A par da importânci­a de ser autónomo e de se deslocar sozinho, Samuel Natário teve ainda outro motivo para reaprender tudo: a filha. Samuel cuida de si e da filha sem problemas. Aos 6 anos, a criança nem se questiona sobre se o pai é diferente ou não. E a maior dificuldad­e na gestão da vida familiar é a mesma de tantos pais: “Ter tempo para estar com ela”, já que o trabalho e os estudos ocupam praticamen­te todo o dia de Samuel.

“Ela cresceu comigo sem ver e o preconceit­o está na cabeça dos adultos, logo, para a minha filha, o pai é normal.” “Ela às vezes discute comigo se vejo ou não e diz-me ‘mas tu consegues fazer tudo’.” E apesar de ser “boazinha” e “não traquinas”, segundo o

Samuel Natário chega todos os dias ao trabalho às 07.00. Yolo tem a sua cama, onde descansa enquanto o dono trabalha Isabel Pragana (nesta página em cima) é a diretora do Centro de Reabilitaç­ão Nossa Senhora dos Anjos, onde Samuel fez reabilitaç­ão em 2014. No centro, reaprendeu a ser autónomo Em vez da bengala, Samuel optou por um cão-guia. Yolo nasceu nos EUA e recebe ordens em inglês

pai, isso não a impede de tentar algumas travessura­s próprias da idade. “Há dias tirou mais rebuçados do que eu tinha deixado. Depois, quando a mãe veio buscá-la, começou a tentar ir buscar o rebuçado que tinha escondido, mas com muito cuidado. Disse-lhe que ela podia ir buscar o rebuçado e ela ficou um bocado à toa. E eu expliquei-lhe: ‘Sabes que o pai não vê, mas o pai percebe tudo.’ E então ela ainda está no processo em que o pai sabe tudo”, brinca.

Além de saber tudo, Samuel faz ainda uma grande ginástica para chegar a todo o lado. “Entro às 07.00 e saio às 15.30 para poder ir para o curso, cujas aulas são das 16.30 às 21.00.” O que lhe dá quatro horas de sono, ironiza. As deslocaçõe­s são feitas normalment­e nos autocarros da empresa, tanto de casa para o trabalho como depois até à faculdade. Menos a da noite, já que Samuel vive em Palmela mas estuda no ISCTE em Lisboa. O regresso é feito de comboio.

Percursos novos que Yolo teve de decorar. E que Samuel garante que, se ele quiser, “aprende à primeira”. O problema é a complexida­de. Foi necessária uma semana para que o cãoguia interioriz­asse todos os caminhos na faculdade, para Samuel se deslocar sem problemas. “São as imediações, a estação dos comboios, todos os percursos dentro da faculdade, as casas de banho, o bar, as salas. Numa semana conseguiu aprender muita coisa.”

Ainda assim, há sempre imprevisto­s e coisas que mudam. Por exemplo, quando estudou o percurso da estação para o ISCTE havia obras no caminho, quando as aulas começaram já não estavam lá. Yolo aprendeu o percurso com esse desvio e depois teve de se adaptar. “As obras também não podem acabar por causa de mim”, relativiza.

Em termos de preparação do espaço público, Samuel reconhece que muitos locais já estão adaptados. E os que não estão não assustam o jovem de 32 anos. “São pormenores num universo tão grande.” Até porque todas as dificuldad­es por que passou “foram já noutra vida”.

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