Diário de Notícias

Anatomia da guerra

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1. Marija Misic com os quatro filhos, em Belgrado 2. Marija Misic, na atualidade, com a mesma faixa com que foi agraciada há 25 anos 3. Inela Nogic, em abril, em Amesterdão 4. Marija Misic e Inela Nogic, em Sarajevo em 1993, numa sessão fotográfic­a durante a guerra contabilid­ade oficial, o cerco da cidade, o maior da história moderna, durou 1425 dias e saldou-se em pelo menos dez mil vítimas mortais.

Um dia, Marija e o pai tinham ido buscar água. O percurso, com cerca de dois quilómetro­s, implicava atravessar uma ponte que era um dos locais mais perigosos por causa dos snipers. Não havia regra: os atiradores furtivos tanto podiam disparar sobre o primeiro como sobre o segundo. Marija avançou. A correr. “Comecei a ouvir as balas a caírem mesmo ao meu lado”, recorda. “Não fui atingida e escondi-me atrás de um elétrico que esteve parado naquele cruzamento durante a guerra inteira. O meu pai viu tudo. Estava tão em choque que a seguir atravessou a andar. Nem sequer correu. Chegou ao pé de mim e abraçou-me.”

Hoje, depois de ser mãe, Marija confessa que olha para trás de forma diferente: “A sensação que tenho é que nunca deixaria os meus filhos fazerem o que eu fiz. Hoje percebo melhor tudo aquilo por que os meus pais passaram. Tenho clara noção da heroína que a minha mãe foi para conseguir alimentar-nos e fazer refeições a partir do nada.

A guerra faz-se de morte e de vida à flor da pele. À flor da sorte. “Nunca me senti tão vivo como naqueles anos. Nunca vivi de forma tão intensa e tão profunda”, conta Mijo Misic. “Nesses momentos, o lado melhor dos seres humanos também vem ao de cima. As pessoas aproximam-se e ajudam-se. Depois, no fim da guerra, cada um segue a sua vida”, acrescenta Marija. Há lógicas que acabam quando a paz começa. Não apenas na Bósnia. › As derivas nacionalis­tas e as tensões étnicas na Jugoslávia começaram a agravar-se depois da morte do marechal Tito, em 1980. No início dos anos 1990, Slobodan Milosevic, o então líder sérvio, acalentava o sonho da construção da Grande Sérvia. Para atingir esse objetivo seria necessário conquistar território e proceder a uma limpeza étnica. Assim, em 1992, a guerra começou na Bósnia e Herzegovin­a, uma região de maioria muçulmana. Durante quase quatro anos Sarajevo esteve cercada pelos militares sérvios, que diariament­e bombardear­am a cidade. Qualquer habitante, independen­temente da etnia ou religião, era um alvo a abater. O cerco, o maior da história moderna, durou 1425 dias, entre abril de 1992 a fevereiro de 1996. Ainda que os acordos de paz de Dayton tenham sido assinados a 14 de dezembro de 1995, o exército sérvio não abandonou de imediato as posições que ocupava nas colinas em redor de Sarajevo. Durante a guerra, em média, 329 projéteis atingiram a cidade diariament­e. O pico verificou-se a 22 de julho de 1993, quando 3777 bombas caíram em Sarajevo. As estimativa­s conservado­ras apontam para 70 mil feridos e mais de dez mil mortos.

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