Estratégias divergentes para o pós-industrial
CINÊS MOREIRA om o 20.º aniversário da Expo 98, celebramos em Portugal o sucesso da reconversão profunda de uma ampla zona industrial contaminada, hoje qualificada e transformada num dos tecidos urbanos mais privilegiados do país. Esta nova porta de entrada na capital, baliza a actual mancha desindustrializada em disputa imobiliária, os ex-bairros industriais e operários de Xabregas, Marvila e Beato. O grande evento de 1998 foi uma oportunidade única de redesenho de cidade. A revitalização ocorre agora em áreas urbanas semiconsolidadas onde as dinâmicas informais da cultura urbana acompanham e apoiam a estratégica públi- ca: o investimento municipal para reconversão de um complexo que serve de “âncora” e atrai investimento privado na zona, que ocorre já no Beato com a Manutenção Militar de Lisboa, e se deseja futuramente na zona oriental do Porto, com o Matadouro Municipal.
Intervir em terreno pós-industrial é também construir a memória colectiva dos locais da histórica política, pelo que considerar a condição pós-industrial implica uma leitura lata e ampla de noções de património e herança, tanto imaterial como material, e mesmo do próprio edificado. Hoje, nos países das fronteiras europeias bálticas – Estónia, Letónia, Lituânia, também a Polónia – mais do que a conversão de edifícios industriais, vivem-se condições complexas, ainda a braços com mudanças estruturais de natureza política, económica e de geopolítica europeia, e a nova orientação para o konsum. O desmantelamento dos sistemas de energia, transporte e produção soviéticos implica a criação de novos sistemas nacionais, refutando a representação identitária de Estado que lhes era implícita. A afirmação de novas identidades nacionais face aos antigos Estados industrializados passa pela intervenção, ou não, nos locais indissociáveis dessa identidade. Se na Estónia existe relutância em preservar estruturas do período soviético, tal resulta no abandono e degradação de fábricas, kolkhozes e sovkozes, gerando paisagens paradoxalmente semelhantes às ficções apocalípticas do cinema soviético de Tarkovsky.
Olhemos aos míticos Estaleiros Navais de Gdansk, a base do movimento Solidariedade, local da grande indústria naval e metalomecânica que marcou a história política europeia, ali celebrado em memoriais no espaço público, no majestoso European Solidarity Center, e na defesa activista do skyline de gruas metálicas, anualmente readquiridas pelo município, uma a uma, abrandando a depredação simbólica iniciada com a privatização. A conversão envolve um ciclo longo: privatização do grande recinto, demolição e desmantelamento de infra-estruturas e edifícios, investimento público no urbanismo e redes, definição programática por investidores privados estrangeiros, escandinavos. Desenha-se a “Nova Gdansk”, por vias e espaços ajardinados que demolem e se encenam perante o edificado abandonado e expectante, interpolado por pequenas indústrias navais que também convivem com a cedência de edifícios a artistas e a grupos independentes.
Em Gdansk, em pleno ciclo de reconversão privada, debate-se agora a peculiar possibilidade de reaquisição parcial do estaleiro pelo Estado: aquisição do núcleo funcional do estaleiro, com cerca de 120 homens que ainda reparam e constroem navios; também se negoceia a reaquisição de um hangar nos Estaleiros Imperiais germânicos, os primeiros edifícios em processo de classificação patrimonial, hoje Dinamarqueses, para a instalação da secção de Arte Contemporânea do Museu Nacional de Gdansk. Em 2011, circulava com ironia artística a Subjective Bus Line, conduzida por ex-operários contadores de memórias e estórias sobre o Solidariedade, a privatização e o desmantelamento – quem sabe se poderão vir a contar a sua “renacionalização”?
Num período de 20 anos as perspectivas alteraram-se e, com elas, as estratégias para o pós-industrial: do grande plano urbanístico, ao arruinamento selectivo, à intervenção pública estratégica, vemos como os locais anteriormente privatizados podem ser readquiridos para novos programas públicos, assim que revelado o interesse patrimonial e económico. A distância crítica altera os filtros com que lemos a história, demonstrando que ir permitindo a alienação, a demolição e a especulação é empobrecer a cidade e as possibilidades de reinterpretação da história contemporânea.