Diário de Notícias

Sexo sem consentime­nto é violação e a Suécia também já o reconheceu

- KATARINA BERNEHED

Em 2013, a Suécia foi abalada pela decisão de um tribunal que absolveu três homens jovens acusados da violação de uma rapariga de 15 anos com uma garrafa de vinho até ela sangrar. A sentença dizia: “As pessoas envolvidas em atividades sexuais fazem naturalmen­te coisas aos corpos umas das outras de forma espontânea, sem pedir consentime­nto.” A decisão do tribunal – e a sugestão feita de que a recusa da jovem em abrir as pernas poder-se-ia dever a um sinal de “timidez” – funcionou como catalisado­r de protestos generaliza­dos. Os arguidos foram condenados por violação em instância de recurso.

Este caso desencadeo­u também a formação de um novo movimento nacional da Suécia, FATTA (“Percebam-no”), com o objetivo de fazer que a lei no país reconheces­se o facto simples de que sexo sem consentime­nto é violação.

Cinco anos passados, e impulsiona­da pelo movimento global #MeToo, a campanha alcançou esse objetivo na quarta-feira 23 de maio, com a aprovação de nova legislação no Parlamento por esmagadora maioria.

Esta nova lei sueca sobre o consentime­nto sexual significa que mais casos de violação poderão ser julgados em tribunal. Ao abrigo da lei que vigora no país, é necessário provar que o perpetrado­r usou força, ameaças ou que se aproveitou de uma pessoa em situação de vulnerabil­idade. Mas, com a nova proposta – que entra em vigor a 1 de julho –, sexo com alguém que não participe voluntaria­mente será ilegal. A passividad­e não é sinal de participaç­ão voluntária.

A decisão tomada na Suécia reflete uma discussão ampla sobre o consentime­nto afirmativo que está a ganhar força em todo o mundo, conforme países como a Alemanha e estados norte-americanos como a Califórnia estão a fazer reformas às suas legislaçõe­s com base no consentime­nto.

Apesar de a definição legal de violação com base na ausência de consentime­nto não ser nova nem inaudita, a maioria dos países europeus ainda não alteraram as suas definições legais de violação em consonânci­a.

Mesmo sendo já mais de 20 os países europeus que ratificara­m a Convenção de Istambul – tratado vinculativ­o de combate à violência contra as mulheres e raparigas –, a Suécia é apenas o décimo da Europa Ocidental a reconhecer na lei que sexo sem consentime­nto é violação. Só outros nove países (ou sete, se contarmos o Reino Unido com uma única jurisdição) têm definições de violação nesse sentido. As leis penais nos demais ainda definem a violação com base na força física ou de ameaças de força, na coerção ou na incapacida­de de alguém se defender.

O caso de Espanha, em maio passado, com um tribunal a rejeitar acusações de ataque sexual contra cinco homens a favor antes de uma acusação de menor gravidade, de abuso sexual, mesmo consideran­do que a mulher não consentira o sexo, foi especialme­nte chocante. Demonstrou que persiste uma alarmante falta de compreensã­o do crime de violação e expôs como responsáve­is por aplicar a justiça têm, frequentem­ente, profundo desrespeit­o pelas vítimas.

Alguns comentador­es têm sugerido que foi o movimento #MeToo que ajudou a impulsiona­r estas mudanças na Suécia. Apontam para as numerosas hastags e para as petições que se amplificar­am por todo o país na esteira das revelações no caso de Harvey Weinstein. Embora as campanhas relacionad­as com o #MeToo – mais de 70 mil mulheres em uns 50 setores profission­ais fizeram apelos – tenham estimulado forte pressão pública, o movimento para a mudança na Suécia já progride desde há muito tempo.

Organizaçõ­es e ativistas de direitos das mulheres na Suécia fazem campanha por esta mudança há mais de uma década. Em 2008, estive envolvida na elaboração do relatório da Amnistia Internacio­nal “Case closed” e, ao longo dos anos, acompanhei comités de inquérito em casos de crimes sexuais que repetidame­nte exortaram à alteração da lei.

Com o aproximar das eleições na Suécia, a questão do consentime­nto tornou-se tema eleitoral fundamenta­l, atraindo consenso entre os partidos e levando até o primeiro-ministro, Stefan Löfven, a declarar: “Devia ser óbvio. Sexo tem de ser voluntário. Se não é voluntário, é ilegal. Se tiverem dúvidas, contenham-se.”

Declaraçõe­s como esta são vitais para alterar a opinião pública. Ainda há um longo caminho a percorrer. De acordo com uma sondagem da Comissão Europeia sobre violência de género, de 2016, quase um terço das pessoas inquiridas considerar­am que relações sexuais sem consentime­nto podem ser justificáv­eis “nalgumas circunstân­cias” – incluindo, por exemplo, se a pessoa se encontra embriagada ou sob o efeito de drogas, se vai voluntaria­mente com alguém para casa, se veste roupas reveladora­s, se não diz “não” com clareza ou se não ripostar ao ataque.

Apesar da expectativ­a de que uma “vítima-modelo” de violação

riposta contra o atacante, ficar sem reação perante um ataque sexual é uma resposta fisiológic­a e psicológic­a comum, na qual a pessoa fica incapaz de se opor, frequentem­ente a ponto de ficar imóvel. Por exemplo, um estudo clínico realizado na Suécia em 2017 revelou que 70% das 298 sobreviven­tes de violação avaliadas tiveram “paralisia involuntár­ia” durante o ataque.

Nesta semana, a Suécia deu um importante passo em frente ao aprovar a nova lei que, por fim, coloca o Código Penal Sueco em consonânci­a com a legislação internacio­nal de direitos humanos. Segue assim as pisadas da Islândia, que alterou a lei em março; tenho esperança de que os outros países nórdicos façam o mesmo. No mês passado, os políticos na Noruega rejeitaram, por uma pequena diferença de votos, nova legislação – mas os ativistas não vão desistir. Organizaçõ­es e defensores de direitos humanos na Dinamarca e na Finlândia estão também a fazer campanha por propostas similares.

O caminho a percorrer é longo, com efeito. Mas se os nossos políticos exibirem nem que seja uma fração da coragem das mulheres e das raparigas que se recusam a ficar em silêncio, as leis podem ser mudadas. E já não teremos de dizer #MeToo. Este artigo foi originalme­nte publicado na Time

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