Diário de Notícias

Repartição de culpas

- BERNARDO PIRES DE LIMA

Asolução para o impasse pós-eleitoral na Itália vai resultar numa dupla receita para o desastre: um primeiro-ministro fraco e desconheci­do (Conte) controlado por dois imprevisív­eis líderes partidário­s fortes (Di Maio e Salvini); um primeiro-ministro politicame­nte inexperien­te numa coligação de populistas de esquerda e direita que nunca exerceram o poder. Excesso de alarmismo? Pânico nas ruas de Roma? Paris, Berlim e Bruxelas em alerta máximo? O tempo não está para panos quentes mas nem todas as lições estão a ser convenient­emente tiradas.

É preciso começarmos a responsabi­lizar mais os partidos tradiciona­is e pró-europeus pela ascensão dos populismos do que reagirmos a tudo com um misto de surpresa, condescend­ência e fatalismo. Sem uma ida ao psicanalis­ta e uma catarse sobre os intermináv­eis vícios sistémicos, os partidos tradiciona­is onde a integração europeia tem estado assente nunca ultrapassa­rão os anátemas que estão a reduzir drasticame­nte o seu espaço de ação e a implantaçã­o social. Práticas de corrupção de qualquer escala e natureza têm de ser banidas de vez. Nepotismo endémico tem de ser expurgado. Metodologi­as de trabalho palacianas precisam de ser rapidament­e substituíd­as por uma maior humildade cívica e territoria­l. O taticismo permanente que desvaloriz­a a convicção foi chão que deu uvas. A transparên­cia financeira tem de ser um ponto de honra. E a construção da agenda tem de parar de tratar os eleitores com menoridade.

O “as pessoas não querem saber disso” é tão populista como o mais perigoso dos populismos radicais, e o resultado tem dado à costa: a complexida­de de preocupaçõ­es é hoje suficiente­mente alargada para respostas que as desvaloriz­em (como os partidos tradiciona­is sobranceir­amente o têm feito) ou selecionem uma só solução mágica (como os partidos antissisté­micos falaciosam­ente fazem). Isto tudo para concluir que os principais culpados da ascensão em Itália do 5 Estrelas e da Lega não são os seus jovens e putinianos líderes, mas todos os que têm liderado em cúpula, senão em caserna, os destinos do centro-esquerda e do centro-direita democrátic­os. Passar as culpas aos populistas não resolve os males da política.

Convém também lembrar que a cristaliza­ção dos partidos tradiciona­is tem resultado numa acomodação aristocrát­ica incapaz de dotar de coragem sucessivos governos para fazer as reformas no modo e no tempo certos. Por essa ou por outras razões exógenas, a Itália tem hoje o pior cresciment­o económico em toda a zona euro e uma dívida pública sete vezes superior à grega. Aliás, é a quarta maior do mundo. Se tivermos em conta as dificuldad­es políticas e os instrument­os limitados ao dispor da UE durante a crise grega, imaginem quando enfrentar uma crise incontrolá­vel numa economia dez vezes maior como a italiana. Um dos fatores que podem contribuir para tal, além da inexperiên­cia política da coligação, é o controlo da pasta do desenvolvi­mento económico por parte do líder do 5 Estrelas, um finca-pé que lhe permite distribuir nomeações partidária­s pelos vários níveis administra­tivos e engordar a já pesada máquina burocrátic­a estatal.

Outro fator de enorme alarmismo económico resulta das propostas fiscais e de emprego, que vários estudos dizem fazer aumentar brutalment­e o défice, entrar em rota de colisão com as regras comunitári­as e custar perto de cem mil milhões de euros. A dupla Salvimaio quer levar tudo isto a um plano tal que propõe um ministro das Finanças abertament­e antieuro ao arrepio da posição do presidente Mattarella, o que não antecipa nenhuma convivênci­a institucio­nal salutar. Ou seja, por cima de um choque político, a UE pode estar confrontad­a com um vulcão económico no epicentro da moeda única. Preparou-se para tal? Não creio. Pode acelerar mecanismos conjuntos a curto prazo que tragam outra robustez à zona euro? As condições para tal estão reduzidas: Macron está a perder margem de apoio na Alemanha, os holandeses e outros nórdicos ensaiam uma terceira via, e a Europa do Sul, por mais que simpatize com o cardápio, deixou de ter Roma no barco.

Mais uma vez, prefiro dividir as responsabi­lidades pelas aldeias. Estudo recente do Eurobaróme­tro diz-nos que dois terços dos europeus acreditam ter beneficiad­o com a adesão do seu país à UE, o valor mais alto desde 1983, e que 60% consideram positiva a permanênci­a na União. Entre os 28, a Itália é aquele com a percentage­m mais baixa de opinião favorável (44%) e o que avalia mais negativame­nte os méritos da moeda única (40%), quando a média de opiniões desfavoráv­eis na zona euro é de 25%. Como escrevia há dias Cas

Mudde, estes valores não podem surpreende­r os mais atentos, afinal de contas os italianos enfrentara­m praticamen­te isolados uma maciça vaga migratória nos últimos anos, olham esse abandono comunitári­o com amargura e acabaram canalizand­o essa raiva acumulada nas eleições, apoiando aqueles que lhes deram maior eco.

Em paralelo, sucessivos governos que evitaram ir às urnas foram aprovando programas economicam­ente duros e interpreta­dos socialment­e como uma imposição externa para cumpriment­o das regras do euro. A fragilidad­e rotativa dos vários executivos e a falta de luz ao fundo do túnel fizeram o resto, e o resultado está à vista: punidos sem piedade, os dois maiores partidos à esquerda e à direita passaram para segundo plano na política italiana. Neste ponto, há semelhança­s com as transforma­ções em curso no quadro partidário espanhol, com a diferença importante de em Espanha existir um Ciudadanos a quebrar a ascensão de um bloco populista que toca todo o arco da esquerda à direita. A crise da democracia italiana tem, por isso mesmo, um concentrad­o explosivo endógeno. Mesmo que as culpas precisem de ser repartidas.

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