Repartição de culpas
Asolução para o impasse pós-eleitoral na Itália vai resultar numa dupla receita para o desastre: um primeiro-ministro fraco e desconhecido (Conte) controlado por dois imprevisíveis líderes partidários fortes (Di Maio e Salvini); um primeiro-ministro politicamente inexperiente numa coligação de populistas de esquerda e direita que nunca exerceram o poder. Excesso de alarmismo? Pânico nas ruas de Roma? Paris, Berlim e Bruxelas em alerta máximo? O tempo não está para panos quentes mas nem todas as lições estão a ser convenientemente tiradas.
É preciso começarmos a responsabilizar mais os partidos tradicionais e pró-europeus pela ascensão dos populismos do que reagirmos a tudo com um misto de surpresa, condescendência e fatalismo. Sem uma ida ao psicanalista e uma catarse sobre os intermináveis vícios sistémicos, os partidos tradicionais onde a integração europeia tem estado assente nunca ultrapassarão os anátemas que estão a reduzir drasticamente o seu espaço de ação e a implantação social. Práticas de corrupção de qualquer escala e natureza têm de ser banidas de vez. Nepotismo endémico tem de ser expurgado. Metodologias de trabalho palacianas precisam de ser rapidamente substituídas por uma maior humildade cívica e territorial. O taticismo permanente que desvaloriza a convicção foi chão que deu uvas. A transparência financeira tem de ser um ponto de honra. E a construção da agenda tem de parar de tratar os eleitores com menoridade.
O “as pessoas não querem saber disso” é tão populista como o mais perigoso dos populismos radicais, e o resultado tem dado à costa: a complexidade de preocupações é hoje suficientemente alargada para respostas que as desvalorizem (como os partidos tradicionais sobranceiramente o têm feito) ou selecionem uma só solução mágica (como os partidos antissistémicos falaciosamente fazem). Isto tudo para concluir que os principais culpados da ascensão em Itália do 5 Estrelas e da Lega não são os seus jovens e putinianos líderes, mas todos os que têm liderado em cúpula, senão em caserna, os destinos do centro-esquerda e do centro-direita democráticos. Passar as culpas aos populistas não resolve os males da política.
Convém também lembrar que a cristalização dos partidos tradicionais tem resultado numa acomodação aristocrática incapaz de dotar de coragem sucessivos governos para fazer as reformas no modo e no tempo certos. Por essa ou por outras razões exógenas, a Itália tem hoje o pior crescimento económico em toda a zona euro e uma dívida pública sete vezes superior à grega. Aliás, é a quarta maior do mundo. Se tivermos em conta as dificuldades políticas e os instrumentos limitados ao dispor da UE durante a crise grega, imaginem quando enfrentar uma crise incontrolável numa economia dez vezes maior como a italiana. Um dos fatores que podem contribuir para tal, além da inexperiência política da coligação, é o controlo da pasta do desenvolvimento económico por parte do líder do 5 Estrelas, um finca-pé que lhe permite distribuir nomeações partidárias pelos vários níveis administrativos e engordar a já pesada máquina burocrática estatal.
Outro fator de enorme alarmismo económico resulta das propostas fiscais e de emprego, que vários estudos dizem fazer aumentar brutalmente o défice, entrar em rota de colisão com as regras comunitárias e custar perto de cem mil milhões de euros. A dupla Salvimaio quer levar tudo isto a um plano tal que propõe um ministro das Finanças abertamente antieuro ao arrepio da posição do presidente Mattarella, o que não antecipa nenhuma convivência institucional salutar. Ou seja, por cima de um choque político, a UE pode estar confrontada com um vulcão económico no epicentro da moeda única. Preparou-se para tal? Não creio. Pode acelerar mecanismos conjuntos a curto prazo que tragam outra robustez à zona euro? As condições para tal estão reduzidas: Macron está a perder margem de apoio na Alemanha, os holandeses e outros nórdicos ensaiam uma terceira via, e a Europa do Sul, por mais que simpatize com o cardápio, deixou de ter Roma no barco.
Mais uma vez, prefiro dividir as responsabilidades pelas aldeias. Estudo recente do Eurobarómetro diz-nos que dois terços dos europeus acreditam ter beneficiado com a adesão do seu país à UE, o valor mais alto desde 1983, e que 60% consideram positiva a permanência na União. Entre os 28, a Itália é aquele com a percentagem mais baixa de opinião favorável (44%) e o que avalia mais negativamente os méritos da moeda única (40%), quando a média de opiniões desfavoráveis na zona euro é de 25%. Como escrevia há dias Cas
Mudde, estes valores não podem surpreender os mais atentos, afinal de contas os italianos enfrentaram praticamente isolados uma maciça vaga migratória nos últimos anos, olham esse abandono comunitário com amargura e acabaram canalizando essa raiva acumulada nas eleições, apoiando aqueles que lhes deram maior eco.
Em paralelo, sucessivos governos que evitaram ir às urnas foram aprovando programas economicamente duros e interpretados socialmente como uma imposição externa para cumprimento das regras do euro. A fragilidade rotativa dos vários executivos e a falta de luz ao fundo do túnel fizeram o resto, e o resultado está à vista: punidos sem piedade, os dois maiores partidos à esquerda e à direita passaram para segundo plano na política italiana. Neste ponto, há semelhanças com as transformações em curso no quadro partidário espanhol, com a diferença importante de em Espanha existir um Ciudadanos a quebrar a ascensão de um bloco populista que toca todo o arco da esquerda à direita. A crise da democracia italiana tem, por isso mesmo, um concentrado explosivo endógeno. Mesmo que as culpas precisem de ser repartidas.