Diário de Notícias

Tudo isto é fardo

- JOÃO TABORDA DA GAMA

Gosto pouco de enganar os outros e ainda menos a mim mesmo. Por isso, a mim e no que aos meus diz respeito, preferia não cair na ilusão de que praticar a morte vence a morte

Na vila havia uma senhora. Quando era a hora chamava-se a senhora e ela vinha a casa do doente. As pessoas saíam, ficava apenas ela e o doente. Os gemidos paravam, o serviço estava feito. Era um capitão do Exército que não dormia nem morria. Contaram esta história à mesa, era eu pequeno, e nunca mais esqueci, como nunca se esquece uma história contada à mesa em que um capitão do Exército é morto por uma almofada segurada por uma velha. Uma história distante, de como se faziam as coisas, e foi assim que me lembro de ter sabido pela primeira vez que se matavam doentes para não sofrerem mais. Abafadeira, o nome da pessoa, da função.

Abafador é o tio Alma-Grande dos Novos Contos da Montanha, de Miguel Torga. O conto tem por base o mito de que as comunidade­s de cristãos-novos matavam os seus moribundos antes que chegasse o padre para os ritos finais e a ele confessass­em a sua verdadeira fé. No Alma-Grande, o abafador já com as mãos no pescoço de Isaac e o joelho no peito é interrompi­do pelo filho Abel. Não acaba o serviço que tinha sido chamado a fazer por Lia, mulher de Isaac. “Atravessou a sala cabisbaixo, longe da majestade trágica das outras vezes. Deixava atrás de si a vida, e a vida não lhe dava grandeza.” Isaac recupera da febre, escapa à morte. Ou melhor não escapa, porque acaba por matar o Alma-Grande. Pescoço por pescoço.

N’O Crime do Padre Amaro, é Carlota a ama, tecedeira de an- jos, que faz dos bebés indesejado­s anjos, como faz ao de Amélia e Amaro. Ao contrário do que Amaro pensava, Carlota tinha bom ar, era “forte de peitos”. A criança é entregue à tecedeira, para ser cuidada por um ano, mas sabendo-se que nunca lá passam mais de dois dias. Como Amélia morre, Amaro arrepende-se (?) e volta para buscar a criança. É tarde, o serviço está feito. A casa de Carlota era asseada, a louça rebrilhava, “e havia tanta ordem que uma claridade parecia sair do asseio e do arranjo das coisas”. Em Eça, a estética da morte, a tentativa de civilizar, a ilusão do controlo, como os prístinos apartament­os das clínicas na Suíça, ou no Oregon dos documentár­ios, onde se morre a pedido, o feng shui como substituto da humanidade que cuida.

Cuidar junto da morte é a humanidade na sua brutalidad­e, o maior poder porque perante o menor poder. Paula Rego ilustra O Crime do Padre Amaro, as crianças, as tecedeiras, os anjos, o padre. Paula Rego, que numa entrevista ao Financial Times disse ser favorável ao suicídio assistido (respondeu yes, não explicou), cuidou do marido com esclerose múltipla. Tinha pintado um quadro influencia­da por esse período, uma mulher a pentear um homem num terraço, a pre- pará-lo para ir para a guerra. Era o quadro preferido de Vic, que morreu em 1988. O quadro ardeu em 2004. Nesse período, de cuidar, diz que deixou de sentir, mas que o mais perto que esteve de sentir foi quando pintou Girls and Dogs, em 1986, em que uma rapariga cuida de um cão, dá-lhe banho, abre-lhe a boca para o alimentar, mas também levanta a saia. Sobre outra sua pintura, DogWoman, em que uma mulher é pintada de gatas, com cara de quem vai morder, diz que ser bestial é bom. É o poder que vem da animalidad­e. E quando isso não é poder?

Muita gente leva o cão ao veterinári­o para que lho matem, serem postos a dormir, diz-se. Fazem-no, não duvido, por amor, por empatia, ficam devastados. Mas o que pensa e sente o cão? Nas reportagen­s virais online sobre o último dia de um cão na terra, com os donos no parque, a comer a sua comida favorita, e por fim o cão no veterinári­o, rodeado da família devastada, morto. Não consigo deixar de ver no fundo dos olhos de cada cão, no seu ar, no seu olhar, lá no fundo dos olhos, a morte que acontece em vida quando estamos a ver o máximo e definitivo abandono a vir por ali fora.

Lembro também um documentár­io francês, há muitos anos. Um doente com uma doença degenerati­va, obeso e que tinha de sair da cama com um pequeno guindaste queria morrer, não sei se se poderia ou não em França naquele momento. O que não esqueci é que queria morrer a ouvir o Fado Amália, penso que dizia que não sabia o que queria dizer a letra, mas gostava. Numa gravação ao vivo em Itália, das melhores versões do fado, antes da música, Amália diz que Amália não vai bem sem amor, e não existe amor sem sofrimento. Sofrimento que não é apenas o efeito, é também areia do cimento de que é feito o amor. Que talvez seja a única coisa que fica deste lado, para lá do pó. Mas amor do verdadeiro, forte, que permanece. Não como o amor que larga quando o fardo pesa, como aquele que no fim do fado sobre ela já diz “Amália? Não sei quem é”.

A lei e as práticas clínicas vigentes permitem uma zona de conformaçã­o, de indefiniçã­o que pode ir sendo concretiza­da no tempo, nos espaços. Entre a vida e a morte essa zona é a da sedação paliativa progressiv­a, contínua ou intermiten­te, que é já praticada. Sabendo-se o que pode provocar, o seu objetivo é retirar o sofrimento, precisamen­te dar dignidade, que é dos dois efeitos o principal e desejado. A sedação progressiv­a, em conjunto com a liberdade do suicídio e o direito de recusar a obstinação terapêutic­a, num contexto compassivo e de permanente melhora dos cuidados continuado, são o consolo humanament­e desejável e possível.

Gosto pouco de enganar os outros, e ainda menos a mim mesmo. Por isso, a mim e no que aos meus diz respeito, preferia não cair na ilusão de que praticar a morte vence a morte. Estejam por lá, ao meu lado, tragam a Amália, deixem a morfina ir gotejando no cinzento indefinido da sedação, e se eu disser que é para desligar a máquina, de certeza que é a televisão com os programas da tarde, que as enfermeira­s voltam a ligar sempre que muda o turno. Vai ser um fardo pesado? Vai. É a vida.

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