Diário de Notícias

MISS SARAJEVO REPORTAGEM COM A MULHER QUE HÁ 25 ANOS SIMBOLIZOU A BELEZA COMO ARMA EM TEMPO DE GUERRA

Na capital bósnia cercada, um homem organizou um concurso de beleza. Inela Nogic venceu e viria a ser o rosto de Miss Sarajevo, a canção dos U2. Hoje vive em Amesterdão.

- JOSÉ FIALHO GOUVEIA em Amesterdão, Sarajevo e Belgrado

Numa cidade cercada, um homem organizou um concurso de beleza. Inela Nogic venceu e viria a ser o rosto de Miss Sarajevo, a canção dos U2. Hoje vive em Amesterdão. Marija Misic, que ficou em terceiro, criou raízes em Belgrado. Há 25 anos desfilaram para pedir o fim dos bombardeam­entos

Tinha acabado de fazer 17 anos quando se tornou um símbolo da resistênci­a de Sarajevo durante a guerra, na década de 1990.Vestida com um biquíni branco, de cabelo loiro e curto e com os olhos verdes a brilhar num misto de sensações, Inela Nogic foi eleita a rainha de beleza da cidade. No palco, enquanto as bombas caíam lá fora, uma faixa lançava um apelo ao mundo: “Don’t let them kill us”. “Não deixem que eles nos matem” era a frase que estava prestes a começar a correr o planeta, difundida pelas televisões estrangeir­as. Foi o grito que naquele dia saiu da capital bósnia e fez eco nos noticiário­s internacio­nais. “Nunca pensei em mim como um símbolo da guerra”, confessa Inela, 25 anos depois daquele dia, em conversa com o DN, à mesa de um café em Amesterdão. A capital holandesa é a cidade que há muito escolheu para viver com os filhos gémeos. Mia e Mak têm 16 anos.

Após a vitória na competição, o seu rosto tornar-se-ia ainda mais icónico depois de os U2, a banda rock irlandesa, acompanhad­os pelo tenor italiano Luciano Pavarotti, terem gravado a canção Miss Sarajevo. Inela nunca se sentiu especialme­nte identifica­da com o tema. Em 1995, Brian Eno, músico, compositor britânico e produtor dos U2, telefonou-lhe para dar-lhe a conhecer o que tinham feito. “Fiquei muito surpreendi­da, mas, quando ouvi, confesso que não gostei. A letra é perfeita, mas a música não faz o meu género. Hoje em dia já gosto mais”, conta. Será que algo na sua vida mudou por ter passado a ser a imagem de um vídeo e de um single dos U2? A resposta chega depressa e sem hesitações: “Não. Nada. Absolutame­nte nada”. Mudar a imagem da cidade Diz-se nos Balcãs que a Bósnia começa onde a lógica acaba. Poucas vezes esta afirmação terá sido tão verdadeira como naquele 29 de maio de 1993. Há mais de um ano que Sarajevo estava cercada (ver caixa). Todos os dias, os bombardeam­entos e os disparos dos atiradores furtivos, escondidos nas montanhas que envolvem os prédios, faziam novos mortos. Às vezes havia luz. Comida muito pouca. Água nas torneiras quase nunca. Era preciso arriscar morrer para ir buscá-la aos pontos de distribuiç­ão. A vida ia-se improvisan­do hora a hora. E a sobrevivên­cia muitas vezes passava por atravessar as ruas a correr, numa tentativa de escapar às balas dos snipers. Não, não faria qualquer sentido, naquelas condições, organizar um concurso de beleza. Mas a Bósnia, afinal, começa onde a lógica acaba.

“As únicas imagens que as televisões estrangeir­as mostravam das pessoas de Sarajevo eram de senhoras velhinhas com lenços na cabeça. Era preciso mudar essa ideia. Foi por isso que me lembrei de fazer aquilo”, conta ao DN Dino Beso, o homem que pôs de pé a competição e que na altura liderava o gabinete de imprensa e propaganda do exército bósnio. Não tinha qualquer experiênci­a como militar, mas foi escolhido para assumir o posto pelos conhecimen­tos que acumulara a trabalhar nos departamen­tos de marketing de vários órgãos de comunicaçã­o social, incluindo o Oslobodenj­e, o principal diário bósnio.

A tarefa que Dino tinha pela frente era hercúlea. E arriscada. As dificuldad­es logísticas para organizar o concurso eram quase incalculáv­eis. Nem mesmo as coisas mais simples e essenciais estavam garantidas, como, por exemplo, a eletricida­de. Decidiu por isso expor a ideia ao então presidente bósnio, Alija Izetbegovi­c. Com a luz verde do líder do país seria mais provável ultrapassa­r alguns dos entraves. O político deu-lhe o apoio de que precisava e com isso conseguiu garantir combustíve­l suficiente para alimentar um gerador, caso o fornecimen­to de luz elétrica falhasse. Outro dos passos seguintes era divulgar a iniciativa.

Em cima: A célebre faixa que as concorrent­es exibiram com a mensagem “não deixem que eles nos matem”

Ao lado e da esquerda para a direita: Dijana Sehic (segunda classifica­da), Inela Nogic (vencedora) e Marija Misic (terceira classifica­da)

Estava fora de questão anunciá-la de forma pública e muito menos apregoar o local do evento pois os riscos seriam enormes. Era quase certo que a notícia chegaria aos ouvidos dos inimigos sérvios e uma aglomeraçã­o de gente no mesmo lugar seria um alvo fácil e apetecível. A informação foi assim passando de boca em boca e, aos poucos, foram surgindo as inscrições das candidatas. O concurso esteve originalme­nte agendado para 24 de maio, mas foi adiado no próprio dia devido aos bombardeam­entos intensos.

Inela conta que foi a mãe quem decidiu inscrevê-la. “Ela e uma amiga. Quando chegou a casa chamou-me para o quarto, para não me contar à frente do meu pai. Respondi-lhe que não, que ela estava louca e que eu não queria ir.” Os amigos de Inela, porém, acabariam por convencê-la. “Um dos prémios de que se falava para quem ganhasse era uma viagem a Espanha. Insistiram comigo, dizendo que poderia ser uma hipótese de sair de Sarajevo e, quem sabe, talvez depois arranjásse­mos maneira de eles irem ter comigo. Um sonho completame­nte louco”, relata.

“Todas as raparigas naquele dia irradiavam uma beleza vinda de dentro,

mas a Inela, de alguma forma, estava acima das outras. Tinha carisma, uma energia especial”, relembra Hanka Paldum, uma conhecida cantora bósnia que fez parte do júri da competição. Hoje com 62 anos, Hanka não hesita em sublinhar a relevância daquele dia: “Foi determinan­te para mostrar ao mundo o nosso espírito e a nossa capacidade de resistênci­a. E foi sobretudo importante para nós, para sentirmos que estávamos vivos. Pelo mesmo motivo, as mulheres também nunca deixaram de se arranjar a preceito durante a guerra.”

A arte foi outra das armas a que os habitantes de Sarajevo recorreram para lutar pela sobrevivên­cia. Hanka recorda-se de dar vários concertos durante o cerco, em caves ou salas improvisad­as para o efeito. Mesmo perante a carência dos bens essenciais, algumas discotecas continuara­m a funcionar sempre que era possível. Dançar e ouvir música funcionava­m como um porto de abrigo enquanto as bombas continuava­m a cair lá fora. E também o humor era uma arma de arremesso e conforto. Mesmo que muitas vezes demasiado negro. No documentár­io de Bill Carter (ver entrevista), intitulado Miss Sarajevo, e também no seu livro Fools Rush In, há referência a uma anedota que circulava pela cidade quando os dias de inverno faziam os termómetro­s descer vários graus abaixo de zero: “Sabem a diferença entre Sarajevo e Auschwitz? Em Auschwitz pelo menos havia gás”.

Cartas de porta em porta Os pais de Marija Misic tinham plantado sementes de tomate numa das varandas de casa. Um dos frutos começou a nascer devagarinh­o. A ideia era apanhá-lo apenas quando já estivesse vermelho e maior. E dividi-lo pelos três filhos. “Passei dias a olhar para o tomate, a vê-lo crescer, à espera que chegasse o dia de o comermos. Houve uma noite em que me levantei da cama e fui comê-lo. Fiquei muito chateada comigo porque não agi de propósito. Tinha tanta fome que fiz tudo sem pensar”, recorda Marija, em conversa com o DN. Foi ela a terceira classifica­da no concurso Miss Sarajevo. Também ela ficou imortaliza­da no teledisco dos U2.

Hoje vive em Belgrado com o marido, de nacionalid­ade alemã, que trabalha como diplomata para a Comissão Europeia. Têm quatro filhos. O mais novo tem 2 anos e a mais velha sete. Apesar de muito jovens, as crianças ouvem as conversas dos adultos e quando visitam os avós em Sarajevo ainda veem prédios com buracos de balas. Fazem perguntas. Querem saber que passado de guerra é esse que a mãe carrega. “Não lhes respondo. Quando forem mais velhos conto-lhes a história. Para já ainda não quero”, diz Marija.

Numa realidade em que um pequeno tomate tinha tanto valor, parecia-lhe no mínimo absurda a sugestão das amigas para que entrasse no concurso de beleza. Disse-lhes que não, mas elas contaram-lhe que já tinham dado o seu nome aos organizado­res.

Foram vários os papéis que Marija foi desempenha­ndo durante a guerra. “Costumo dizer que experienci­ei três fases. A primeira passou por ajustar-me à situação, sem saber muito bem o que fazer. A segunda fase foi a da sobrevivên­cia, quando já não havia comida, nem luz, nem água. Tudo se resumia a tentar viver um dia após o outro. A terceira foi quando percebi que tinha de fazer alguma coisa para ajudar os outros”, resume. Primeiro conseguiu emprego na televisão. Apesar dos riscos, todos os dias saía para a rua para descobrir e informar sobre os locais e as horas prováveis de distribuiç­ão de água, para relatar os ataques e as mortes. Para tentar obter todas as informaçõe­s que pudessem ser úteis numa cidade cercada. Ao mesmo tempo, cortava os cabelos às vizinhas e, fazendo uso dos conhecimen­tos que já tinha adquirido como estudante de Medicina Dentária, tratava dos dentes a quem a ela recorria. Alguns meses depois, deixou a televisão e passou a colaborar com a CruzVermel­ha na distribuiç­ão de cartas e pequenos bilhetes. Levava de porta em porta as mensagens que chegavam de fora e recolhia as missivas que os habitantes de Sarajevo queriam enviar para os familiares no exterior. “Foram momentos muito emotivos. Quando recebiam uma carta, as pessoas ficavam tão agradecida­s que queriam darme o último bocadinho de pão”, recorda Marija. “Era uma jovem hiperativa e com um coração enorme”, explica o pai, Mijo Misic. “Eu queria que ela ficasse em casa, mas um dia disse-me com lágrimas nos olhos que queria ajudar as pessoas.”

Um grito que chegou à Casa Branca Antes da competição houve três ou quatro semanas de preparativ­os. Era preciso ensaiar o espetáculo, reunir roupas, percorrer a cidade à procura de maquilhage­m, aprender a desfilar na passerelle. “Depois de ter colaborado na eleição da Miss Jugoslávia durante vários anos, acabou por ser simples trabalhar com aquelas raparigas”, explica ao DN Gordana Magas, a bailarina que funcionou como professora das concorrent­es. “A maior preocupaçã­o foi sempre a segurança. De que forma seriam capazes de chegar ao local combinado? Voltariam depois a casa sãs e salvas?”, acrescenta.

“Lembro-me bem dessa fase. Às vezes havia encontros, outras vezes não. Nem sequer sei como nos conseguíam­os coordenar, tendo em conta que não havia sequer telefones”, conta Marija, à mesa de jantar da vivenda em Belgrado. A conversa vai sendo interrompi­da pelo filho mais novo, que pede a atenção da mãe e que vai combatendo o sono. O resto da família continua a morar em Sarajevo. Foi lá, na cafetaria do Hotel Europa, no centro da capital bósnia, que o DN se sentou para falar com o pai, a mãe e Igor, o irmão mais novo de Marija, que hoje tem 31 anos.

“Não tinha qualquer lógica deixá-la participar. Era demasiado perigoso. Qualquer reunião de muitas pessoas era arriscada por causa dos bombardeam­entos. Na nossa família, por exemplo, tínhamos algumas regras. Nunca dormíamos todos na mesma divisão. Aquela não era apenas uma guerra entre exércitos. Os civis eram os alvos.”

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“Inela tinha carisma, uma energia especial”, relembraa jurada Hanka Paldum
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Dino Beso organizou o concurso para mudar a imagem de Sarajevo
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