Diário de Notícias

MIGUEL SOUSA TAVARES

“METADE DOS MEUS AMIGOS DE INFÂNCIA DO NORTE TRATAM-ME POR MIGUEL CARAPAU”

- JOÃO CÉU E SILVA

Depois de ter publicado uma seleção dos seus textos políticos, o escritor/comentador dedicou-se à escrita de um testemunho. Não é exatamente uma biografia, mas o protagonis­ta está lá, seja no modo como olha o mundo que viveu nas primeiras quatro décadas de vida seja nos julgamento­s que regista

Miguel Sousa Tavares lançou nesta semana um novo livro. Não, não é um romance à Equador, antes um conjunto de histórias que contam os primeiros quarenta anos da sua vida e a que chamou Cebola Crua com Sal e Broa... Já vamos saber porquê este título exótico, numa entrevista em que relata muitos sentimento­s, vivências de vários tempos e até algumas intimidade­s, mesmo que no livro estejam embrulhada­s numa narrativa sempre cuidada e de modo a evitar polémicas entre o que pode ser público e privado. Não deixa de referir que tratava por tu o atual Presidente da República até ser eleito; de classifica­r António Costa como um político florentino; de fazer várias referência­s a Mário Soares; de esmagar Salazar, e não esquece Álvaro Cunhal. Aliás, deste recorda uma história para esta conversa que não está no livro: “Encontrei-o num supermerca­do em Lagos com uma melancia na mão e um ar muito embaraçado. Cumpriment­ei-o e perguntei-lhe o que se passava. Ele respondeu: ‘A minha companheir­a mandou-me escolher um melão e não sei bem se é isto!’ Tive de lhe escolher o melão.” Entretanto, garante que já desistiu de ir viver para o Brasil: “Aquilo voltou a ser um fungagá.” Antes de terminar, reafirma que um dos seus maiores prazeres é viajar e revela os seus dois grandes projetos: “Queria ir à Austrália, se souber de alguém que queira fazer-me companhia...” e fazer “uma grande viagem de barco”.

Esta é a história do Miguel carapau? Sim. Metade dos meus amigos de infância do Norte tratam-me por Miguel carapau, mesmo que não saibam porquê. Já me conheceram assim. E os do Sul não sabem dessa minha alcunha, de que sempre gostei, e no livro relato os lugares onde nasceu. Tem explicação para um título destes! Só a malta do Norte é que sabe o que é Cebola Crua com Sal e Broa. Comer cebola crua com sal e broa não é nojento? Nojento? Não é com certeza. Invulgar pode ser, mas era a minha merenda todos os dias no Norte. Merenda é típico do Norte e quer dizer lanche, o que me faz lembrar as aulas de Medicina Legal que tinha na faculdade quando estudava Direito, em que o professor tinha um léxico diferente para os alunos de Direito e os de Medicina: “O ânus para os senhores de Medicina e o cu para os senhores de Direito.” Voltando à minha merenda de todos os dias, era deliciosa mesmo que quando acabasse de comer tivesse de ir a correr para uma bica de água gelada para tirar o gosto intenso a cebola com sal. Este livro é um grande confronto com a sua biografia. Como é que sai dele? Tranquilís­simo, porque o grande confronto era o de escrever enquanto a memória estava fresca. Isto não é um livro pró-memória, mas para deixar registado o que lembro antes de me esquecer. Receia algum estado de demência? Não, é como quando o computador está com o disco rígido com cagabytes a mais e o melhor é limpar antes que rebente. Portanto, decidi descarrega­r os dados e agora o espaço está limpo. São os primeiros 40 anos que estão neste livro. E os outros que entretanto viveu? Já não me interessa contá-los, nem aos leitores. Os mais recentes conhecem a minha vida porque é mais ou menos pública e seguiram-na. Não há muitas novidades. Também acho que é menos interessan­te no sentido em que o que foi determinan­te aconteceu até aí, sobretudo na infância, que é como começo o livro por ser a parte mais marcante. Por que razão decidiu recordar? Sempre tive uma certeza, a de que a infância me determinou muito. No livro, descrevo como é que aos 6 anos um miúdo sai de casa dos pais e do que lhe é habitual na cidade em que vivia e é mandado para um povoado a 400 e tal quilómetro­s de distância, longe de tudo, e fica por lá dois anos. Hoje seria estudado pelos psicólogos como uma agressão, mas sobrevivi e foi determinan­te. Sempre achei que tudo o que acontece na infância, pelo menos na minha, iria ser importante. Nesse aspeto, a minha história é muito otimista e prova que não só somos resiliente­s como capazes de transforma­r coisas que seriam contra nós numa ferramenta para a vida. Esses primeiros capítulos são bons para quem partilha as ideias de Freud! Não estou a extrapolar, é o caso pessoal. Os profission­ais que tirem conclusões. Quando recorda os colegas de escola que andavam descalços, a intenção é fazer um retrato social já esquecido? Pode ser esse o facto que me levou a escrever este livro, o de ter a obrigação cívica e ética em contar que frequentei uma escola na primeira classe em que era o único que ia calçado. As pessoas têm a obrigação de saber que esse país existiu, que não foi assim tão longe quanto isso e que é preciso perceber o que significav­a em termos éticos, sociais e de formação. Até podem dizer “olha que sorte, eras o único que ia calçado”, mas aquilo era duro de ver e ser o menino rico da escola pobre. Acho que já ninguém tem essa noção e, quando conto as condições, só penso que se fosse hoje os pais ou a Fenprof encerravam logo a escola. Ao ler essa parte e a da passagem pelo Ministério da Educação compreende-se porque faz uma crítica tão cerrada às reivindica­ções dos professore­s... Não a faço assim tão cerrada, apenas uma que foi confundida pelo facto de os professore­s não quererem ser avaliados – é a base de qualquer evolução profission­al, seja no ensino público ou privado. O que chamo à atenção é que tudo é relativo e deve ser comparado. Estamos esquecidos de onde viemos, e não há tanto tempo como isso, e sobrevivem­os. São os tais tempos salazarist­as que assustaram Mário Soares quando propôs a lei sobre as rendas e lhe disse que era salazarist­a, o que o levou a cancelá-la de imediato. Pode dizer-se que se nota um antissalaz­arismo constante? Era endémico em mim. Tive a sorte e o infortúnio de conhecer o cheiro do sa-

lazarismo, e quando digo o cheiro refiro-me ao cheiro da PIDE, por ter acordado três vezes quando iam lá a casa prender o meu pai às oito da manhã. O cheiro dos pides estava entranhado em mim, aquela roupa húmida, suja e sebenta, que era o cheiro de Salazar e do país para mim. Ainda fico com os pelos eriçados quando me lembro desse tempo, tanto que quando ouço conversas e começo a sentir que alguém está a tentar resgatar o Salazar saem-me as garras para fora. Mesmo que boa parte da juventude o ache agora uma figura importante? São ignorantes e imbecis. Têm a sorte de ter nascido num país onde não precisaram de sofrer nem de lutar pela liberdade. São uns imbecis. Outro dos ódios que lhe lemos é em relação à educação dos jesuítas! Manda a boa-fé que diga que o colégio de jesuítas onde andei parece ter mudado radicalmen­te o seu ensino, mas não posso deixar de contar o que vi e o que foi nos anos 1960: uma catástrofe em termos pedagógico­s, éticos e religiosos. Os jesuítas que conheci eram uma vergonha, e dou esse testemunho. Conta tudo o que viu ou resguarda-se? Tive algum cuidado, mas não deixei de fora nada de grave. Digamos que tivesse eu assistido a fenómenos de pedofi- lia os teria contado, no entanto o que vi já é suficiente­mente grave. O que me chocou era a total inversão de valores morais e pedagógico­s do seu ensino. E no resto dos temas contou tudo? Uma pessoa tem sempre de se resguardar um pouco porque isto não pretendia ser um striptease. Contei o essencial para conhecer não só o meu percurso de vida, porque não é o centro da história, mas o testemunho de vida que tive a sorte de ver. Uma época em que surge o atual Presidente Rebelo de Sousa e refere o seu pouco apreço pela palavra “afetos”. Exatamente. Acho que quem inventou isso foi Jorge Sampaio, mas o que vejo é que ele é uma fábrica ambulante de afetos e tenho de viver com isso. Hoje tenho um problema quando o encontro, o de não saber como o tratar. Por “senhor Presidente” faz-me uma enorme confusão, pois 15 dias antes de ser eleito tratávamo-nos por tu... Sabe-se que integrou a Mocidade Portuguesa. Como foi a experiênci­a? Nunca integrei nem tive atividade, era obrigatóri­o. Mas o meu pai teve essa inspiração extraordin­ária de me dizer: “Inscreva-se na vela porque como eles não têm barcos não vai ter de fazer o que quer que seja.” Assim foi, jogava futebol. Grande parte dos seus leitores são mulheres. Há aqui vários machismos... Refere-se à professora D. Alice, que era uma insatisfei­ta e mal resolvida. Acho que as leitoras não ficarão incomodada­s, é um facto da vida que vão reconhecer como verdadeiro. Ou quando perfilha ideais imperialis­tas sobre o Portugal com colónias... Estou a falar de D. JoãoVI e da época dos impérios. Hoje não faria sentido que o Rio de Janeiro fosse a capital de um império triangular com Lisboa e Angola nos outros vértices, mas teria sido fascinante se ele não tivesse voltado do Brasil. Teria sido muito interessan­te ver a evolução da história. Que dava quase um Equador? É verdade, dava um segundo Equador. Quando se acaba de ler o livro sente-se que nada fazia sentido na ditadura. Estaremos num tempo parecido? Acho que não há comparação. Quando olho retrospeti­vamente percebe-se que havia uma sensação de fechamento e eu, embora fosse demasiado imaturo para prever o que se seguiria, pensava qual seria o final desta história. Será que iríamos viver eternament­e como o último país que ainda combate por colónias em África e a viver à margem de toda a Europa? Hoje, bem ou mal, estamos integrados e não distantes do mundo. Percebe-se que a casa dos seus pais era uma escola alternativ­a. Foi o que lhe moldou a visão do mundo? Salvou-me, sobretudo, do sufoco dos jesuítas e do país. Como passava oito horas por dia numa prisão que era a escola e o resto do tempo noutra que era Portugal e o regime do Estado Novo, felizmente na casa dos meus pais havia um espaço de liberdade e de genuína anarquia que nos disciplina­va mental, cultural e intelectua­lmente. Tinha a sensação de que o que se passava dentro da casa dos meus pais não era para ser contado nem aos meus amigos. Era um segredo e, portanto, uma escola alternativ­a. Foi isso que o faz estudar o marxismo e abeirar-se do MRPP? Nunca me abeirei do MRPP. Entrei para a faculdade e juntei-me à associação de estudantes que na altura era dominada por eles, mas o que eu queria era estar no contra. Como era o MRPP que dominava, trabalhei com eles, como a seguir trabalhei com a associação que estava ligada ao PCP, e trabalhari­a com qualquer uma. Sempre fui antimaoist­a e antiestali­nista. Isso não evita que Cunhal lhe tivesse dito que percebia bem de marxismo... Porque tinha feito um curso de filosofia marxista e percebia do assunto. Não esquece que António Costa não ganhou as eleições mas formou governo. Porquê vir até ao presente? É uma constataçã­o, pois conseguiu formar um governo tendo perdido as eleições. Classifico-o como um político florentino, título que já vi aplicado a Mitterrand. O balanço que faço da sua governação é bem mais positivo do que negativo, e se o anterior governo tivesse continuado as coisas teriam sido piores. Um governo de teimosos é sempre mau. Veja-se o Bruno de Carvalho, mesmo que não seja comparável a Passos Coelho, afinal só ao próprio se pode comparar. Acha que Carvalho irá demitir-se? Só se demitirá por morte ou alguma forma estatutári­a. Desde o início que percebi que o homem ia ser isto, estava escrito na cara. Faz-me confusão o apoio que tem de certas figuras. Sabemos pelo livro que se recusou a ir para a tropa. Preferia o exílio? Teria recusado ir se tivesse sido chamado. O 25 de Abril salvou-me, pois não teria ido combater pelas ex-colónias. Já estava decidido na minha cabeça que seria um exilado político. Não iria defender os negócios dos Vinhas, dos Mellos e dos Espírito Santo em África. Muitas das páginas relatam a sua vida jornalísti­ca enquanto critica as empresas onde trabalhou. Mudou alguma coisa? Mudou. Falo do que era a RTP, onde não me deixavam fazer televisão. Era o exemplo da empresa pública onde a inércia proíbe fazer diferente sem enfrentar uma coligação de medíocres que estavam instalados num monopólio, que abanou de cima a baixo com as privadas. Não tem saudades do jornalismo? Tento não ter saudades das coisas boas porque é uma armadilha horrível. O que transparec­e no livro é que fugi daquela frase “no meu tempo é que era bom”. Felizmente, gosto sempre do tempo que estou a viver.

“Uma pessoa tem sempre de se resguardar um pouco porque isto não pretendia ser um

striptease. Contei o essencial”

“Hoje tenho um problema quando o encontro [Marcelo Rebelo de Sousa], o de não saber como o tratar. Por ‘senhor Presidente faz-me faz uma enorme confusão, pois 15 dias antes de ser eleito tratávamo-nos por tu”

“Teria recusado ir [para a tropa] se tivesse sido chamado. O 25 de Abril salvou-me, pois não teria ido combater pelas ex-colónias. Já estava decidido na minha cabeça que seria um exilado político. Não iria defender os negócios dos Vinhas, dos Mellos e dos Espírito Santo em África”

 ??  ??
 ??  ??
 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal