Diário de Notícias

Tirar preservati­vo durante sexo sem o parceiro saber deve ser crime?

Batizado a partir da tecnologia usada em aviões “invisíveis”, o stealthing – tirar ou romper dissimulad­amente o preservati­vo durante o sexo – é já criminaliz­ado em vários países e objeto de pelo menos uma condenação, como violação, na Europa. O DN ouviu v

- FERNANDA CÂNCIO

“Sempre tive discussões com muitos parceiros por causa do preservati­vo. Há anos que não tenho um parceiro estável e portanto uso preservati­vo para me proteger de doenças de transmissã­o sexual. Mas muitos parceiros têm feito pressão para não usar: ‘Não consigo o mesmo prazer’; ‘Antes de acabar vou avisar-te’; ‘A minha ex tomava a pílula e não estou habituado’, etc.” Irene tem 22 anos e é estudante. Mas, apesar de ser uma feminista muito ativa, assume que muitas vezes acedeu ao não uso de preservati­vo. Até que teve uma má experiênci­a. “Estava um pouco bebida e tive sexo com um amigo sem preservati­vo. Por causa disso tomei a pílula do dia seguinte. A experiênci­a foi horrível. As hormonas têm muitos efeitos e tive de fazer tudo sozinha. Ele não mostrou qualquer preocupaçã­o, não perguntou sequer como eu estava. Senti-me só e desprezada. Só gostaria de uma mensagem tipo: ‘Olha, como estás? Precisas de alguma coisa? Mas não, esteve-se nas tintas. Desde então, não aceito nenhuma relação sem preservati­vo. A minha formação feminista fez-me perceber que pedir para usar preservati­vo é um direito e negá-lo é violência. Dois anos depois disso, noutra noite em que também estava um pouco bebida, levei para casa um tipo que conheci numa discoteca. Dei-lhe um preservati­vo e ele colocou-o. Mas quando estávamos a ter relações e mudámos de posição percebi que ele já não o tinha. Acendi a luz e perguntei o que se passara. Respondeu: ‘O preservati­vo rompeu-se e não estava confortáve­l, por isso tirei-o.’ Fiquei muito irritada. Ele tentou beijar-me e continuar. Empurrei-o e mandei-o embora. Quando saiu do quarto bateu com a porta chamando-me puta porque não o tinha deixado ‘acabar’.” Suspira. “Isto acontece com muita frequência, percebi depois. Muitos homens acreditam que por uma mulher ter com eles relações sexuais de uma noite podem tratá-la como um objeto.”

Onze anos mais velha, Helena passou pelo mesmo. “Foi em 2015. Estava no estrangeir­o a fazer o doutoramen­to, envolvi-me com uma pessoa e tive com ela um encontro sexual. A dada altura percebi que o preservati­vo que exigira que ele pusesse tinha desapareci­do. Empurrei-o de cima de mim – foi intuitivo – e perguntei ‘Que raio? Onde está o preservati­vo?’. Ele assumiu que tinha tirado e que como eu não tinha dado por isso achava que não tinha ‘mal nenhum’. Chegou até ao ponto de dizer ‘mas não estavas a gostar? Qual o problema?’” Helena vestiu-se e saiu, furiosa. “A única razão que encontro para não o ter agredido foi ficar tão chocada. Chamei um Uber e no carro para casa sentia-me muito estranha. Não tinha sido agredida mas sentia-me suja, diminuída. E a primeira reação foi culpar-me: como é possível, estou a fazer um doutoramen­to e caio numa destas? Liguei a um amigo e disse ‘como deixei que isto sucedesse?’ Ele respondeu-me ‘mas tu não tiveste culpa nenhuma, foste enganada, ele agrediu-te sexualment­e.’” Preocupada

com as consequênc­ias de sexo desprotegi­do, foi ao hospital da universida­de fazer testes. “Contei tudo à médica e ela perguntou se tinha sido alguém da universida­de, porque se fosse era obrigada a participar. Como não era, disse-me que dependia de mim ir ou não à polícia. Pensei muito e como estava quase a vir para Portugal e não queria afligir os meus pais decidi não fazer queixa. Mas como ele me mandou uma mensagem como se estivesse tudo bem descompu-lo. Ficou muito surpreendi­do.” Surpreendi­da ficou também Helena quando começou a pesquisar sobre casos semelhante­s ao seu. “Descobri que é referido pelo termo stealthing [derivado da palavra inglesa stealth, que designa ação furtiva ou secreta e a tecnologia usada em aviões que não aparecem nos radares] e que se trata de uma prática muito corrente, havendo uma discussão jurídica sobre se é ou não violação. E, para meu enorme choque, que há todo um mundo de fóruns online de homens a ensinar outros homens a fazer e a justificar o que fazem com a argumentaç­ão de que ‘as mulheres são inferiores’, ‘elas gostam’ ou ‘temos o direito de espalhar a semente’.” “Tem muito a ver com machismo” Alguns desses fóruns, citados em artigos da imprensa internacio­nal sobre stealthing, desaparece­ram. Outros mantêm-se. Num deles, direcionad­o para homens que têm sexo com homens, ensinam-se “várias técnicas”, incluindo tratar preservati­vos de forma a que rebentem durante o ato. Manuel, 50 anos, tem sexo com homens e já teve uma situação de stealthing. “Preguei-lhe um murro no nariz. Acho um crime, e um crime que ainda por cima põe em causa a minha saúde.” Infelizmen­te, comenta, “é uma prática comum. Tenho amigos que foram infetados com HIV dessa forma”. Sobre o porquê, tem algumas ideias. “Penso que tem muito a ver com machismo. Há muitas pessoas que são as ‘insertivas’ e que consideram o outro um objeto para o seu prazer. E é uma afirmação de poder também.”

Numa atividade em que o preservati­vo faz sempre parte da negociação contratual, Teresa, 30 anos, trabalhado­ra sexual há sete, diz já se ter deparado com stealthing “segurament­e mais de dez vezes. A romperem o preservati­vo de propósito, nunca apanhei, mas a tentarem tirar, muitas vezes. Felizmente nunca tive o azar de não perceber a tempo que o iam fazer porque sou muito desconfiad­a e estou sempre a controlar. E quando dou conta não dou hipótese.” Se tentam discutir expulsa-os (trabalha num apartament­o) mas geralmente tentam convencê-la com “qual é o mal?”. Nunca chamou a polícia porque perante a ameaça desaparece­m: “Não querem ser apanhados com uma transgéner­o” Sobre os motivos pelos quais o fazem, não tem dúvidas. “Em pleno século XXI há homens que olham para nós, por termos sexo por dinheiro, como alguém sem direitos, sem vida própria. Olham para mim como se não tivesse direito a respeito ou a ter uma vontade.” Quanto à qualificaç­ão, não hesita: “Além de ser uma total falta de respeito? Deveria ser considerad­o crime porque uma pessoa que quer forçar outra a um ato que a outra não quer já é mau, quanto mais com as consequênc­ias que o ato poderá ter. Acho que é violação.”

E há ordenament­os jurídicos em que o é. Caso da Suíça, de onde veio em 2017 a notícia do primeiro caso conhecido no mundo de condenação por stealthing: um ano de prisão, com pena suspensa, por violação, aplicado a um homem que retirou o preservati­vo, ejaculando sem ele, durante um encontro sexual com uma mulher que lhe dissera não querer ter sexo não protegido. Mas na maior parte dos países a conscienci­alização sobre a existência do problema e a decorrente discussão jurídico-penal são muito recentes, mesmo se foi há oito anos que o mundo pela primeira vez debateu o assunto – quando o australian­o Julian Assange, fundador da Wikileaks, foi acusado por duas suecas de ter tido com elas sexo não protegido sem o respetivo consentime­nto (ato que a lei sueca integra no conceito de coação sexual, crime com pena até quatro anos). Assange, que está desde 2010 a viver na Embaixada do Equador em Londres para não ser sujeito ao mandado de extradição exarado por pedido das autoridade­s suecas, viu a acusação ser arquivada em maio de 2017.

“Lembro-me de ter pela primeira vez pensado nisso nessa altura e de que as pessoas que comentavam o caso escarnecia­m, diziam que aquilo não podia ser crime”, lembra a socióloga IsabelVent­ura, autora de Medusa no Palácio da Justiça ou uma História daViolação Sexual ( Tinta da China, 2018). “Dou aulas de Género e Direito na Universida­de Católica do Porto e no ano passado os alunos colocaram a questão de qual seria o enquadrame­nto legal para casos em que alguém tira o preservati­vo sem conhecimen­to da pessoa durante o sexo. O consenso foi de que seria algo condenável, mas não necessaria­mente criminal.” A opinião da socióloga é outra: “Na minha perspetiva é um crime sexual, que se enquadra na atual redação do crime de violação. Porque estamos perante um ato sexual consentido que pela remoção do preservati­vo se transforma num ato não consentido: a pessoa não consentiu em sexo sem preservati­vo. Mas creio que faria sentido explicitar na lei a referência a este ato. Nos crimes sexuais isso é importante, porque se não estiver explícito o mais certo é que um magistrado considere que não é crime.” A professora de Direito Penal Inês Ferreira Leite concorda com Isabel Ventura. Sem dúvidas sobre o facto de o ato dever ser criminaliz­ado, considera que “terá de se acrescenta­r essa situação no n.º 164 do CP [violação]”, porque considera que não pode ser penalizado com a atual redação. Frisa, porém, que se trata de um crime no qual agressor e vítima podem ser de qualquer género: “Por exemplo numa prática sexual em que o homem esteja amarrado, na qual ficou combinado que usavam preservati­vo mas a parceira lho retira.”

Já Rita Mota e Sousa, magistrada do Ministério Público, tende a achar que o stealthing pode ser penalizado com a lei que há. “A pessoa quereria, consentiri­a naquela relação sexual se soubesse que não havia preservati­vo?” Esta é a pergunta que, considera a procurador­a, deve ser feita. “É importante que haja tipicidade na lei penal, para que as pessoas saibam se o que fazem é crime ou não. Mas é óbvio que a liberdade e autodeterm­inação sexuais têm de ser protegidas. Pode-se entender que a pessoa, sendo ludibriada, está a ser constrangi­da a um ato que não consentiu. E nesse sentido acho que o stealthing cabe na atual letra da lei. Porque a relação sexual tem de ser consentida no todo.” Porém, adverte, “o constrangi­mento que faz parte da tipificaçã­o do crime de violação ainda não está muito clarificad­o na jurisprudê­ncia. É uma porta aberta, uma alteração que não foi ainda aproveitad­a em toda a sua latitude”.

E que diz a nova redação (desde 2015) do artigo 164.º do Código Penal? Se o número 1 mantém a definição “tradiciona­l” de violação – “Quem, por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconscien­te ou posto na impossibil­idade de resistir, constrange­r outra pessoa a sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral; ou a sofrer introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objetos”, incorrendo em pena de três a dez anos –, o número 2 inclui todas as outras circunstân­cias em que se possa constrange­r alguém aos mesmos atos: “Quem, por meio não compreendi­do no número anterior, constrange­r outra pessoa” (pena de um a seis anos). É, de acordo com a opinião de Rita Mota e Sousa, no número 2 que cabe o stealthing; mas Inês Ferreira Leite crê que seria necessário acrescenta­r uma frase – “algo como ‘constrange­r outra pessoa a sofrer penetração vaginal, anal ou oral sem preservati­vo’.”

Margarida Monteiro, que está a fazer a sua tese de mestrado em Direito Penal sobre stealthing, admite que não é evidente que a atual redação do crime de violação permita penalizá-lo. “A palavra constrange­r ali cria-nos problemas; o significad­o que lhe está habitualme­nte associado é ‘forçar’.” Mas crê que se “trata de um erro do legislador: deixaram uma palavra ali que não devia lá estar.” É que, explica, “interpreta­ndo o ‘constrange­r’ do número 2 do artigo 164.º à luz da Convenção de Istambul (que considera crime qualquer ato sexual para o qual não tenha sido prestado consentime­nto, o qual, de acordo com o artigo 36.º daquele tratado internacio­nal, ‘deve ser dado voluntaria­mente, como manifestaç­ão de vontade livre, sendo avaliado no contexto das circunstân­cias envolvente­s’), e sendo clara a intenção do legislador de que as situações nele previstas não incluam violência, faz sentido defender que o stealthing se enquadra aí. Até porque o número 2 ficaria vazio de sentido se tivéssemos de, para preencher o tipo de crime, inserir o crivo da violência por causa da palavra ‘constrange­r’.” Assim, conclui, “no stealthing iria pela dissimulaç­ão e pelo engano. Se no meio de um ato sexual consentido retiro dissimulad­a e dolosament­e o preservati­vo que foi estabeleci­do ser condição necessária para o sexo, começa aí a agressão do bem jurídico liberdade sexual – que é o bem jurídico protegido no caso dos crimes sexuais. Porque consentir numa relação sexual em determinad­as condições não significa que se as condições mudam o consentime­nto se mantém. As pessoas não deram um consentime­nto em branco para o sexo”.

Margarida, que confessa sentir-se “um pouco só no tema do stealthing” – “Não há ninguém em Portugal que se tenha debruçado sobre o assunto, e as pessoas quando digo o que estou a fazer perguntam, com ar de incredulid­ade, ‘mas vais fazer uma tese sobre a remoção não consensual de preservati­vo?’” –, deseja muito “fazer uma tese útil para as pessoas”. E vê a reflexão sobre o stealthing “como uma forma não só de chamar a atenção para uma prática criminosa que deve ser penalizada como de tornar clara a questão do consentime­nto no sexo, porque ao externaliz­á-la torna-a mais compreensí­vel”. Aliás, diz, o principal objetivo da sua tese é debater e clarificar o bem jurídico liberdade sexual: “Como nunca ninguém pegou nisto, é possível fazer a discussão de raiz.”

“Empurrei-o e mandei-o embora. Quando saiu do quarto bateu com a porta chamando-me puta porque não o tinha deixado ‘acabar’.”

IRENE

22 ANOS “Preguei-lhe um murro no nariz. Acho um crime, e infelizmen­te uma prática comum. Tenho amigos que foram infetados com HIV assim.”

MANUEL

50 ANOS “Perguntei: ‘Que raio? Onde está o preservati­vo?’ Ele assumiu que tinha tirado . ‘Qual é o mal, não estavas a gostar? ’, perguntou.”

HELENA

33 ANOS “Estamos a falar de um ato sexual consentido que, pela remoção do preservati­vo, se transforma num ato não consentido: a pessoa não consentiu em sexo sem preservati­vo. Acho que é violação. ”

ISABEL VENTURA

SOCIÓLOGA DO DIREITO

 ??  ?? Julian Assange, o fundador da WikiLeaks, na varanda da Embaixada do Equador em Londres. Foi em 2010 acusado, pela justiça sueca, de no âmbito de relações sexuais consensuai­s com duas cidadãs do país ter retirado o preservati­vo sem seu conhecimen­to. Com um mandado internacio­nal de captura em seu nome, o australian­o pediu asilo ao Equador. O caso foi arquivado em maio de 2017
Julian Assange, o fundador da WikiLeaks, na varanda da Embaixada do Equador em Londres. Foi em 2010 acusado, pela justiça sueca, de no âmbito de relações sexuais consensuai­s com duas cidadãs do país ter retirado o preservati­vo sem seu conhecimen­to. Com um mandado internacio­nal de captura em seu nome, o australian­o pediu asilo ao Equador. O caso foi arquivado em maio de 2017
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Rita Mota e Sousa, procurador­a,crê que stealthing é violação

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