“PARA O MARQUÊS DE POMBAL, A POLÍTICA CULTURAL É A POLÍTICA PROPRIAMENTE DITA”
“Portugal sempre se comparou dentro da escala europeia, sempre foi integrado na cultura europeia e dependente dela para se criar como país” “Não se sabia explicar porque acontecia um sismo, mas passa a ser oficial que não é por dizer ou não uma oração ou fazer procissões que há terramotos ou não” “Há uma opção por um tipo peculiar de Luzes. O regime cultural autoproclama-se iluminado, mas diferente das Luzes dos filósofos franceses”
Ouviu a palavra “historiador” numa conversa entre os pais e achou que era a profissão que queria ter. Entre a Antiguidade ou a História Contemporânea, optou pelo século XVIII, influenciado por António Hespanha e outros professores de eleição. Quer também dedicar-se ao século XVI para aprofundar este outro tempo em que o mundo mudou radicalmente. Acaba de publicar O Censor Iluminado, sobre a censura criada pelo marquês de Pombal. Foram doze anos de escrita, mais quatro até à publicação. O livro constrói -se à volta da contradição: a censura pode ser iluminada? Esse paradoxo é o pressuposto de base do pombalismo. Pombal fora embaixador em Londres e Viena e integrou na forma de olhar para o país em comparação permanente com o exterior. A bitola é “o que diriam os franceses, os ingleses, os austríacos se vissem Lisboa agora? Creem que são mais civilizados mas os portugueses atingiram um grau de civilização inaudito no passado e incomparável com o estrangeiro”. Chama-lhe “comparação ansiosa”. É obsessiva. Portugal sempre se comparou dentro da escala europeia – sempre foi muito integrado na cultura europeia e dependente dela para se criar como país. O que há de novo no pombalismo é a tentativa de construir um Estado moderno como forma de suprir essa lacuna entre Portugal e o que eles chamam “os reinos mais polidos da Europa”. Numa metáfora à volta deste aperfeiçoamento, faço uma distinção entre destilação e fermentação, duas formas de entender a evolução da cultura. Uma forma é a típica do século XVIII, por destilação – quanto menos melhor, chegámos ao saber puro e excluímos a superstição. No século XIX, com o romantismo e o liberalismo, há uma visão pluralista que se prolongou até hoje – a evolução por fermentação: quanto mais ideias melhor, quanto mais contradição no espaço público melhor porque entre vários erros alguns hão de acertar. Quando pensamos em censores, lembramo-nos de pessoas pouco qualificadas, mas naquele caso eram escolhidos os mais sábios? Pombal tem a visão de que a esfera pública é uma arena onde se fazem os grandes debates sociais, mas acredita que ela só pode existir se ordenada a partir de um ponto de onde emana a luz. Esse ponto, para ele, é o rei. É diferente do que acontecia antes com a Inquisição e as outras instituições de censura, porque ele pensa que é preciso mudar radicalmente o sistema e criar uma caixa negra, a Real Mesa Censória, com 20 dos homens mais sábios do reino. Segundo ele, evidentemente. Porque a opinião era sempre a dele? Sim. Havia outros tão ou mais sábios no exílio, uns judeus, como o Ribeiro Sanches, outros tinham-se convertido ao protestantismo, como o Cavaleiro de Oliveira. Os 20 eram os que o Pombal achava que, estando dentro do reino, sendo tementes a Deus e leais ao rei D. José, poderiam ler todos os livros. Os que eram escritos em Portugal e eram escolhidos para ser impressos, os que chegavam do estrangeiro. E eram traduzidos? Ou eram traduzidos ou vendidos em língua estrangeira, em livreiros como a Bertrand. Decidiram, por decreto, mudar o gosto teatral dos portugueses. Há 250 anos, em maio de 1768, o teatro espanhol passou a ser considerado inverosímil, com personagens incredíveis, por razões estilísticas que escondiam razões políticas. É de então a representação do
Tartufo de Molière, que põe em cena um falso devoto que engana uma família fazendo-se passar por muito religioso mas só querendo ficar com o dinheiro. Tartufo aparecia vestido de jesuíta. E era desmascarado por ordem do rei, o que não acontece no original. Por um valido do rei. O Tartufo são os jesuítas, o ministro do rei é o marquês de Pombal, que vem deixar entrar a luz no reino contra a superstição. E ainda liam cartazes, cardápios de restaurantes... ... cartazes das corridas de touros, calendários e figuras dos santinhos... …e livros pequeninos que até as pessoas analfabetas usam como amuleto. Por exemplo, uma oração a Santa Bárbara contra as trovoadas. No interior de Portugal e no interior do Brasil muita gente diz a famosa novena: “Santa Bárbara se levantou, seu pezinho direito calçou...” Eram para usar na algibeira. Esses livros foram banidos? E isso causa polémica entre os censores, porque uns acham que a devoção não é um mal e outros põem em causa a maneira supersticiosa de usar esses livros que acredita que se fizermos uso de determinadas palavras, dizendo-as nas orações ou usando-as na algibeira, elas têm efeitos físicos, podem causar ou impedir trovoadas. Isto era muito complicado para o pombalismo. Porque não era ciência? Por isso e pelo terramoto. Uns anos antes, em 1755, terramoto tinha devastado Lisboa e muitos outros lugares do reino. E houve gente que disse que o terramoto era um castigo de Deus. Nomeadamente Malagrida? Sim, um jesuíta italiano vindo do Brasil que dizia que os lisboetas eram maus católicos porque os moços e moças iam à missa para trocar bilhetinhos namoradeiros e que Deus tinha decidido castigá-los. Malagrida foi a última vítima da Inquisição. É uma ironia trágica: uma Inquisição que passou 200 anos a perseguir hereges, principalmente judeus, ou melhor, cristãos-novos que judaizassem, acaba a queimar um jesuíta devoto. A explicação oficial do reinado de D. José e do pombalismo é que o terramoto é um efeito natural, de causas naturais, naturalmente provocadas. Não se sabia explicar porque acontecia um sismo, mas passa a ser oficial que ninguém acredite que é por causa de se dizer ou não determinada oração, fazer ou não muitas procissões que há terramotos ou deixa de haver. Só 20 anos, depois de chegar ao poder, Pombal cria a Mesa Censória. Porquê? O pombalismo tem três fases de nove anos cada. Em 1750, Pombal entra no governo como secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros. A primeira fase tem o terramoto como evento central, e depois ele assume grande parte do poder. Em 1759 há o atentado ao rei, a expulsão dos jesuítas e começa o processo dos Távoras, é a consolidação do poder. Em 1768, dá início ao que poderíamos chamar uma revolução cultural. Não é só a Real Mesa Censória, toma outras medidas com impacto? 1768 é um ano dedicado ao que chamaríamos política cultural, só que para ele essa é a política propriamente dita. São fundados a Real Mesa Censória, a Imprensa Nacional, o Real Colégio dos Nobres – que era dirigido pela Real Mesa Censória, financiado por um imposto chamado subsídio literário. São introduzidos novos manuais de aprendizagem do latim, muda-se o gosto teatral dos portugueses que, a par das touradas, era o espetáculo coletivo mais importante pelo menos para a Lisboa da época. Reforma-se os estatutos da Universidade de Coimbra, sempre com uma visão quase maniqueísta de Pombal de que é preciso rejeitar o passado a que ele chamava escolástico, aristotélico e que ligava ao ensino dos jesuítas. Muitos manuais da Universidade de Coimbra foram proibidos. A Universidade de Évora, que era jesuítica, é encerrada. Por outro lado, há uma opção por um tipo peculiar de Luzes. O regime cultural autoproclama-se como iluminado, esclarecido, das Luzes, mas é diferente das Luzes que costumamos ver nos livros da filosofia clássica como as Luzes dos philosophes. Dos filósofos da Enciclopédia? Dos franceses como Rousseau, Voltaire, Diderot, d’Alembert. São todos muito diferentes uns dos outros, alguns partilham com os censores portugueses a ideia de que para se ser iluminado é preciso não se ser pluralista, embora a palavra usada não fosse esta. A questão da censura está subjacente a qualquer regime? Está e é irresolúvel. Muita gente diz: naquela altura havia censura, nem tudo se podia dizer. Outros dizem: havia censura mas tudo se dizia. Ambas podem ser verdade. Tal como muitas ideias podiam ter nascido, ou nascido mais cedo, se não houvesse censura, também muitas ideias nascem, ou nascem daquela maneira, porque há censura, como formas imaginativas de escapar.