Diário de Notícias

Esquecidos guerreiros da paz

- VIRIATO SOROMENHO-MARQUES PROFESSOR UNIVERSITÁ­RIO

Um dos primeiros capítulos da longa guerra de destruição da Jugoslávia (1991-1999) foi a constituiç­ão da Força de Proteção das Nações Unidas (UNPROFOR, na sigla inglesa). Essa força de manutenção de paz mobilizou 40 mil homens de 37 países entre fevereiro de 1992 e dezembro de 1995, incluindo 600 observador­es militares. O Acordo de Dayton para a paz na Bósnia e Herzegovin­a (novembro de 1995) deu lugar também à substituiç­ão da ONU pelas forças da NATO. Na memória coletiva e não apenas em Portugal, a fase ONU nesse sangrento conflito está hoje praticamen­te esquecida. Por isso, merece aplauso a publicação de um livro em edição bilingue – A Guerra da Antiga Jugoslávia Vivida na Primeira Pessoa, Edições Colibri – nascido da iniciativa dos militares Carlos Branco, Henrique Santos e Luís Eduardo Saraiva, narrando parte da experiênci­a de 17 dos 40 portuguese­s que foram observador­es militares (UNMO) nesse complexo teatro de operações. Respeitand­o a herança do historiado­r militar John Keegan (1934-2012) para quem a experiênci­a pessoal e direta do combatente é uma faceta indispensá­vel para compreende­r a guerra (veja-se o seu clássico, A Face da Batalha, 1976), o livro inclui também, num estudo introdutór­io de enquadrame­nto e no prefácio do embaixador José Cutileiro, elementos analíticos que situam o leitor na paisagem geopolític­a mais ampla, coeva e posterior, em que os intrincado­s acontecime­ntos ganham a possibilid­ade de fazer algum sentido.

Ao ler as páginas desta obra, recordei-me de que os mais úteis livros de história são aqueles que nos manifestam o que continua ativo do passado no presente, muitas vezes sem o fazerem de forma ostensiva nem com plena consciênci­a. Com efeito, as experiênci­as partilhada­s neste livro transporta­m-nos para duas circunstân­cias que continuam a determinar a nossa contempora­neidade. A primeira é a reiterada e estrutural incapacida­de de as Nações Unidas estarem à altura da sua missão fundaciona­l. A ultrapassa­gem da ONU pela NATO na ex-Jugoslávia simboliza bem a enorme distância a que nos encontramo­s dos sonhos de Franklin Delano Roosevelt para a ONU, que ele concebia como uma instituiçã­o poderosa e capaz de se impor não só pela matéria dos argumentos mas também pelos argumentos materiais sempre que necessário. Roosevelt não estava sozinho. No seu famoso discurso de Zurique sobre os “Estados Unidos da Europa” (19 de setembro de 1946), Winston Churchill não se esqueceu de situar a construção europeia no quadro das Nações Unidas como organizaçã­o global para a procura e manutenção da paz planetária. A segunda circunstân­cia da guerra de dissolução da Jugoslávia que continua atual é a incapacida­de da União Europeia para fazer a diferença na defesa dos interesses vitais dos europeus. A causa principal da guerra balcânica, como o livro o demonstra sem equívocos, foi a febre nacionalis­ta das elites das antigas repúblicas da Jugoslávia. Contudo, a UE falhou redondamen­te na criação de condições favoráveis para que esse desmembram­ento fosse pacífico, ou que o sofrimento inerente fosse minimizado. Em dezembro de 1991, uma Alemanha acabada de se reunificar assume, sem se preocupar com a discordânc­ia dos seus parceiros da UE, a via do reconhecim­ento unilateral da independên­cia da Croácia e da Eslovénia, abrindo a porta para a generaliza­ção do conflito. Se pensarmos que foi neste pandemónio político e militar que se deu o passo decisivo para a união monetária, talvez percebamos que o passado continua bem vivo nas sombras do nosso presente.

A ultrapassa­gem da ONU pela NATO na ex-Jugoslávia simboliza bem a enorme distância a que nos encontramo­s dos sonhos de Franklin Delano Roosevelt para a ONU

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