Diário de Notícias

Eutanásia, 2019: para um debate sério e informado

- MIGUEL OLIVEIRA DA SILVA PROFESSOR CATEDRÁTIC­O DE ÉTICA MÉDICA DA FMUL

Numa coligação improvável entre oportunas e inoportuna­s declaraçõe­s e contrastan­tes pressões emocionais de última hora – com quebra chocante de neutralida­de nalguma comunicaçã­o social –, 150 deputados recusaram na generalida­de a legalizaçã­o da eutanásia.

O assunto está, porém, muito longe de se poder considerar encerrado. Não apenas porque sendo as maiorias sempre conjuntura­is, a que agora votou contra a legalizaçã­o assenta numa margem muito escassa. Sobretudo por após as eleições legislativ­as de 2019 ser plausível que aumente o número de deputados favoráveis à legalizaçã­o da eutanásia no PS e no PSD.

Acresce que é legítimo crer que alguns dos que votaram contra, podendo até simpatizar com o sim, o tenham feito por razões metodológi­cas de elementar decência política; não quiseram suportar o ónus de uma dúvida legítima: saber se tinham autoridade ética para tal e se o debate fora suficiente, esclareced­or e participad­o.

Em qualquer caso, nos debates da campanha de 2019 ter-se-á de falar em doenças, sofrimento, morte, inscrevend­o a posição concreta no respetivo programa eleitoral – tudo aquilo que alguns não queriam.

O cidadão não vai, uma vez mais, ser surpreendi­do: agora sabe com que conta nesta área, sendo mais difícil o triunfo do silêncio e do calculismo a que assistimos – sem surpresa – nas últimas semanas: todos deverão revelar então a sua posição.

Porque se entre os deputados foi necessária uma votação nominal para que, de forma facilmente identificá­vel, o país conhecesse a sua posição – com extraordin­árias piruetas nalguns casos –, que dizer de tantos “notáveis”, políticos no ativo ou não, tão céleres a opinar e que agora se quedaram pelo cómodo silêncio, muitos nem sequer reconhecen­do respetivas e legítimas dúvidas ou hesitações?

Com certeza que esse é também um direito. Mas de muitos esperava-se que percebesse­m ser esta a hora de intervir, assumir responsabi­lidades, não ficar calado, mesmo que fosse só para exigir mais e melhor debate.

No final de 2019, após as legislativ­as, sem futurismo e por entre imponderáv­eis, tendo então já havido debate nacional anunciado, plural e aprofundad­o, será interessan­te ver que argumentos terá então o PR para vetar e/ou enviar para o Tribunal Constituci­onal (TC) tal diploma, se aprovado.

Não foi também ainda agora que os cidadãos conheceram a leitura, no caso concreto, do TC sobre o art.º 24.º da CRP: a vida humana é inviolável, sim, mas no cômputo alargado dos valores e direitos em confronto bastaria tal para encerrar desde logo a questão?

Quando, inevitavel­mente, toda esta discussão regressar, espera-se que em Portugal a paisagem, moral e nos cuidados de saúde, seja já outra – e isto poderá influencia­r uma nova votação.

Ninguém compreende­rá que o próximo governo, qualquer que seja, não inclua como prioridade efetiva o acesso equitativo no Serviço Nacional de Saúde a cuidados paliativos e continuado­s, consignand­o, de facto, verbas para tal adequadas. Não é admissível que só 10% a 15% dos cidadãos tenham acesso aos cuidados paliativos de que necessitam – já sem falar da avaliação da respetiva qualidade.

É igualmente inevitável a paulatina existência de outra relação das instituiçõ­es e profission­ais de saúde com os cidadãos, doentes ou não, na recusa crescente e concreta da futilidade terapêutic­a, na informação e respeito pelos direitos dos doentes (à recusa terapêutic­a, ao testamento vital, a cuidados paliativos e escolha da morte natural não são eutanásia).

Todo este debate poderá, pois, ter contribuíd­o para efetivamen­te vir a melhorar os cuidados de saúde e a informação de cidadãos e pôr em prática alguns direitos dos doentes.

Saber em que medida estas efetivas alterações nos cuidados de saúde, na divulgação, implementa­ção e respeito pelos direitos dos doentes e, bem assim, uma reflexão mais alargada, informada, pública e nacional sobre esta temática se repercutir­á na decisão da próxima AR é certamente, e por enquanto, mero exercício de adivinhaçã­o. Mas é possível que os eleitores penalizem aqueles que agora exorbitara­m o seu mandato: esse é um comportame­nto que todos entenderão.

Em qualquer caso, nada é inelutável: legalizaçã­o da eutanásia não é uma inevitabil­idade, muito menos civilizaci­onal, como se viu há poucas semanas na insuspeita Finlândia.

Mas o que quer que então venha a decidir-se resultará de um outro e mais alargado debate público de cidadãos (art.º 28.º da Convenção de Oviedo), num outro tempo e na prática concreta da tantas vezes esquecida democracia participat­iva (art.º 2.º da CRP), que não recusa, antes complement­a e interpela sinergicam­ente a democracia representa­tiva.

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal