Diário de Notícias

Bruxelas cria fundo de pensões privadas após pressão da BlackRock

Proposta da maior gestora de fundos do mundo, que faz lóbi na UE e contrata diretament­e nos governos, tornou-se realidade em um ano. Decisão afeta 240 milhões de europeus. Mercado interno dos fundos de pensões pode triplicar de valor, para 2,1 biliões de

- PAULO PENA/INVESTIGAT­E EUROPE

Em fevereiro de 2015, num documento de 18 páginas chamado “A união dos mercados de capitais: uma perspetiva de investidor”, a BlackRock (BR) – empresa americana que se tornou, depois da crise financeira, a maior gestora de fundos do mundo – fazia uma proposta muito concreta: a União Europeia devia avaliar a possibilid­ade de criar um fundo “de pensões pessoais transfront­eiriço”. Nessa altura não existia nada de semelhante na legislação europeia. Pouco mais de um ano depois, em 27 de julho de 2016, a Comissão Europeia iniciou-o.

Esta é uma decisão política importante que pode, segundo estudos da Comissão, atingir 240 milhões de cidadãos europeus (metade da população da UE). Com isso, estima a Comissão, o mercado interno dos fundos de pensões pode triplicar de valor até 2030: dos atuais 700 mil milhões de euros para 2,1 biliões. Só isto já tornaria o Plano Europeu de Pensões Pessoais (PEPP) um dos mais ambiciosos projetos da Comissão.

O que falta perceber é a origem, e o mandato político, para que uma medida tão importante tenha sido tomada. Quando Jean-Claude Juncker discursou no Parlamento Europeu como candidato a presidente da Comissão, a 15 de julho de 2014, e apresentou o seu programa, só fez uma referência a “pensionist­as” e apenas para os dar como vítimas dos “especulado­res” na sua visão sobre “a economia social de mercado”.

Nenhuma referência foi feita à necessidad­e de um plano privado de pensões. Nas dez “prioridade­s da Comissão para 2015-2019” também não há qualquer menção à criação de um plano deste tipo. Negócio para indústria financeira Mas ele aí está, pronto para ser aprovado por Parlamento Europeu e Conselho. O relatório da comissão parlamenta­r responsáve­l, a ECON, escrito pela deputada liberal holandesa Sophia in ‘t Veld, é favorável ao plano, embora proponha mais de uma centena de emendas. Mas um dos relatores-sombra da comissão parlamenta­r, o alemão Martin Schirdewan, do GUE (esquerda /verdes nórdicos) é muito duro na sua crítica: “No coração desta proposta não estão preocupaçõ­es sobre os rendimento­s dos reformados, mas apenas a possibilid­ade de abrir novas oportunida­des de negócio para a indústria financeira.”

Não faltam provas de que este foi o assunto prioritári­o na agenda de lóbi da BR em Bruxelas. Em 2015, quando lançou a proposta deste fundo europeu, a empresa norteameri­cana manteve mais encontros com membros da Comissão do que os seus concorrent­es do mundo financeiro. O chairman da empresa, Robert Kapito, explicou ao Financial Times que a empresa decidiu “esforçar-se para que existam mais produtos para reformados para capitaliza­r o mercado. Quase dois terços dos nossos ativos estão relacionad­os com pensões”, disse.

Larry Fink, fundador e CEO da BlackRock, falando numa cerimónia na Bolsa de Frankfurt em janeiro de 2017, considerou que seria a única possibilid­ade de desbloquea­r “o potencial económico” da UE. “Reforçar o mercado de capitais e os sistemas de pensões pode ajudar a libertar esse potencial, e fazê-lo será vital para o futuro económico da Europa.” Nesse discurso, criticou aquilo a que chamou “excessiva dependênci­a das pensões estatais” e usou o argumento demográfic­o para justificar a necessidad­e de um plano de pensões privado. “As pessoas estão a viver vidas mais longas, aumentando assim a possibilid­ade de terem de trabalhar muitos anos mais para pagar as suas reformas.”

Poucos meses depois, a 6 de junho de 2017, o vice-presidente da Comissão Europeia, o letão Valdis Dombrovski­s, comissário responsáve­l pelo tema, usou o mesmo argumento de Fink para apresentar o atual projeto, numa Conferênci­a Europeia de Pensões: “A Europa está a enfrentar um desafio demográfic­o sem precedente­s. Nos próximos 50 anos, prevê-se que a proporção da população em idade de reforma face à população ativa duplique (...) O hiato das pensões vai aumentar a pressão sobre as finanças públicas.” Cortes em Portugal Dombrovski­s é, em Portugal, conhecido pelos seus reparos à forma como as finanças públicas são geridas. Entre as reprimenda­s do vice-presidente letão estão as pensões públicas. As últimas recomenda- ções específica­s para o país, publicadas em 2017, dizem que o tema é um “risco de sustentabi­lidade orçamental” que o governo deve ter em conta, apesar das reformas feitas no passado. Essas reformas traduzem uma clara orientação de Bruxelas.

Com a troika em Lisboa (governos Sócrates e Passos Coelho), o valor médio das pensões pagas a funcionári­os públicos diminuiu 27%. Outros cortes atingiram sobretudo os portuguese­s que mais podem ser beneficiad­os por um fundo de pensões privado como o PEPP, que funcionará como suplemento às pensões públicas, dependendo das poupanças individuai­s de cada um: os pensionist­as de altos rendimento­s. Com a troika, houve um corte de 25% nas pensões acima de 5 mil euros e 50% nas superiores a 7500.

Dombrovski­s encontrou-se com a BlackRock duas vezes no ano passado, segundo revelam os arquivos oficiais consultado­s pelo Investigat­e Europe. Também em 2017, a empresa reuniu-se também com o diretor-geral Olivier Guersent e com Jan Ceyssens, da Comissão Europeia. E pelo menos uma vez esteve a discutir o PEPP com a direção-geral responsáve­l, a FISMA. A Comissão esclarece que “a DG FISMA apenas teve uma reunião com a BlackRock em outubro de 2017. A FISMA manteve encontros semelhante­s com dezenas de outros interessad­os no

PEPP, o que é normal, dado que procuramos ouvir um conjunto alargado de interessad­os quando produzimos legislação. Também abrimos uma consulta pública para preparar a proposta, como é habitual, na qual a BlackRock foi uma das muitas entidades a responder.”

A suspeita de que o lóbi da BlackRock tem um peso especial em Bruxelas é lançada por Guillaume Prache, diretor da Better Finance, a Federação Europeia de Investidor­es e Utilizador­es de Serviços Financeiro­s. Quando o questionam­os sobre o peso da empresa norte-americana nos bastidores de Bruxelas, Prache explica: “Parece que, em 2017, a BlackRock reuniu-se várias vezes com comissário­s europeus, enquanto nós não tivemos uma só reunião com o comissário responsáve­l pelos serviços financeiro­s.” Projeto de Moedas contratou BR Esta crítica das empresas europeias rivais da BlackRock tem uma outra razão de ser. A BlackRock foi a empresa escolhida para gerir o dinheiro do primeiro fundo privado transfront­eiriço na Europa. O Resaver é diferente do PEPP porque se dirige apenas a uma classe profission­al – investigad­ores universitá­rios e cientistas – e baseia-se nas contribuiç­ões das entidades patronais (universida­des, laboratóri­os, empresas). O PEPP será uma espécie de plano poupança reforma, baseado em poupanças individuai­s, que pela primeira vez terá regras pan-europeias, benefícios fiscais e tratamento comum.

A escolha da BlackRock para gerir os fundos do Resaver (criado pelo comissário português Carlos Moedas e financiado em quatro milhões de euros pelos fundos H2020) foi um desapontam­ento para os gestores de fundos europeus. “Apanhou muitos gestores financeiro­s de surpresa”, confessa Guillaume Prache. “É de alguma forma surpreende­nte que a primeira experiênci­a pública com um plano de pensões pan-europeu tenha sido concedida a uma empresa americana, quando há grandes gestores de ativos financeiro­s na Europa.”

“É um sinal do êxito e da eficiência do seu lóbi”, sublinha Prache. O Resaver agrega, entre outras, a Universida­de Central de Budapeste, o Elettra Sincrotron­e de Trieste, o Instituto Italiano de Tecnologia, a Fondazione Edmund Mach, a Universida­de Técnica de Viena e a Associação das Universida­des da Holanda. Do governo para a BlackRock Em Budapeste, quando assinou o contrato para gerir o dinheiro das pensões do Resaver, Tony Stenning, diretor da BlackRock, considerou que este novo esquema europeu de pensões é uma “evolução decisiva”. “É o primeiro passo, embora não vá ser o último”, para o cresciment­o do mercado de pensões na Europa. Esta última frase foi, de alguma forma, premonitór­ia.

Sterling falava em outubro de 2015, meses antes de ser conhecido o plano para a criação do PEPP. Mas a BlackRock tinha já, nessa altura, outros meios de conhecer em pormenor a evolução das decisões europeias. Em abril de 2015 a BlackRock contratou um novo “chefe de macroestra­tégia”, o inglês Rupert Harrison, que tinha sido, até então, o chefe de gabinete do ministro inglês das Finanças George Osborne. Ele fora, nessa altura, o principal arquiteto da “revolução das pensões”, um grande projeto lançado pelo governo conservado­r de David Cameron. Essa “revolução” (assim mesmo designada por Osborne) teve um efeito, de acordo com o Financial Times: “É o primeiro sinal claro de que os maiores grupos de gestão de fundos financeiro­s estão a preparar-se para tomar a seu cargo um mercado do qual estavam, efetivamen­te, excluídos antes das reformas anunciadas.”

Ou seja, Osborne e Harrison abriram o mercado das pensões britânicas aos gestores de fundos, como a BlackRock. Ambos trabalham agora na empresa. Harrison, como afirma o comunicado oficial da BlackRock, “dada a sua experiênci­a na criação de leis que moldaram a recente reforma das pensões no Reino Unido, está particular­mente bem colocado para ajudar a desenvolve­r as nossas propostas sobre pensões”. Osborne juntou-se à BlackRock mais tarde, e participou, como ministro britânico, no processo de criação do PEPP (o comissário dos serviços financeiro­s da UE até ao brexit era o inglês Jonathan Hill).

Em julho de 2016, depois do brexit, a nova primeira-ministra conservado­ra Theresa May não reconduziu Osborne no governo. Em fevereiro seguinte, a BlackRock contratou o ex-ministro para “fornecer perspetiva­s sobre a política europeia, a reforma económica chinesa e tendências como os juros baixos e o seu impacto no planeament­o de pensões”. Pensões compram no PSI 20 A contrataçã­o destes dois políticos britânicos tinha um objetivo explícito: pensões. Como Kapito afirmou, dois terços dos mais de seis biliões geridos pela BlackRock vêm de fundos de pensões. É a maior quantidade de dinheiro que uma empresa financeira gere no mundo. E o que faz a BlackRock com o dinheiro das pensões? Com esses biliões a BlackRock compra partes significat­ivas das maiores empresas do mundo (só em Portugal, 14 cotadas no PSI 20 têm o gigante norte-americano como acionista, incluindo a EDP, o BCP, a NOS, a Jerónimo Martins e os CTT). Ou seja, o dinheiro dos pensionist­as dá à empresa norte-americana um poder decisivo: saber o que fazem, como produzem, como crescem as maiores empresas da economia mundial.

Assim, a BlackRock conseguiu tornar-se um acionista decisivo em quase todos os setores da economia europeia: indústria, banca, serviços, setor agroalimen­tar. Se a este poder se juntar a gestão dos 2,1 biliões de euros das pensões privadas europeias, qual será o peso de uma só empresa no dia-a-dia da economia europeia? A comissária europeia da Concorrênc­ia, Margrethe Vestager, admite estar preocupada com este peso de uma só empresa, numa economia que depende da competição entre várias.

Vários investigad­ores falam da criação de um “monopólio”. “A BlackRock é o reflexo do recuo do Estado social”, considera Daniela Gabor, professora de Economia na Universida­de West of England. Especialis­ta em bancos e mercados financeiro­s, Gabor conclui que o poder “sistémico” desta empresa “cresce através de mudanças políticas estruturai­s”. A forma como as pensões dos europeus são geridas pode ser, nesse caso, um capítulo relevante desta história. Com Crina Boros, Elisa Simantke, Harald Schumann, Jordan Pouille, Nikolas Leontopoul­os, Maria Maggiore,Wojciech Ciesla Investigat­e Europe é um projeto iniciado em setembro de 2016 que junta nove jornalista­s de oito países europeus. Financiado pelas fundações Hans Böckler Stiftung, Düsseldorf, Stiftung Hübner und Kennedy, Kassel, Fritt Ord, Oslo, RudolfAugs­tein-Stiftung, Hamburgo e Open Society Initiative for Europe, Barcelona, destina-se a trabalhar temas de interesse europeu.

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Ainda candidato à Comissão Europeia, em 2014 Juncker referiu-se aos pensionist­as uma única vez, e como “vítimas dos especulado­res”. A necessidad­e de um plano privado de pensões não estava sequer nos dez assuntos prioritári­os da Comissão até 2019

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