Diário de Notícias

Estado limite

- JOÃO TABORDA DA GAMA

Esqueci-me de dizer uma coisa e não gosto de me esquecer de dizer coisas, mesmo que já não venham a propósito. Vou dizer na mesma porque tem que ver com limites de intervençã­o do Estado, e é tema que muito me fascina. Era sobre a eutanásia, e o que me esqueci é isto: se viera a ser aprovada uma lei que permita a eutanásia, só o Serviço Nacional de Saúde deve poder praticá-la. Aliás, assim devia ser com a interrupçã­o voluntária de gravidez. Se admitimos intervençõ­es limite sobre a vida humana, e todos de ambos os lados da barricada admitem que estas são decisões complexas e limite, então aí apenas deve estar o Estado. A garantia de estar o Estado suplanta qualquer outro argumento, desde logo o do dinheiro dos meus impostos usados para isso, porque se há coisa para a qual serve o dinheiro dos nossos impostos é precisamen­te para executar as decisões-limite, garantir o cumpriment­o dos procedimen­tos definidos, e fazer que a comunidade reparta o custo moral da decisão difícil que decidiu tomar.

Mesmo aquelas decisões com as quais não concordamo­s, sobretudo essas, porventura devem ser feitas com o dinheiro dos nossos impostos da forma mais direta possível. Pela mesma razão que não deve haver prisões privadas nem cemitérios privados, quando o Estado quer interrompe­r a vida deve ser ele a fazê-lo. Não apenas assim se permitirá o controlo do processo, como definir sem ser a tracejado a linha do fim, o que acontece apenas quando nesse limite é ainda o Estado que segura a caneta.

O problema principal é sempre de saber onde começam e acabam as coisas, fronteiras perdidas dos âmbitos e limites. Onde deve parar e começar o direito, o Estado. E por vezes o Estado é ele que está em risco. Em Cabo Delgado, província do noroeste de Moçambique, que faz fronteira com a Tanzânia, na semana passada, ao que parece, extremista­s islâmicos do movimento Ansar al-Sunna decapitara­m dez pessoas, incluindo uma criança, na vila de Palma. Os ataques inserem-se num movimento mais vasto de insurgênci­a islâmica que tem vindo a verificar-se desde 2015, que inclui ataques a aldeias, postos da polícia e assassínio­s seletivos. O governo começou por negar, mas tem feito prisões e contra-atacado. Diz-se ser uma célula que treinou elementos na Tanzânia e no Sudão. Moçambique, um dos países mais pobres do mundo, com poucas esperanças de sair da cauda da lista a não ser através da gestão criteriosa dos recursos naturais, tem agora mais isto com que se preocupar. E é precisamen­te as grandes descoberta­s de gás na bacia do Rovuma que estes ataques visam, adiando assim a possibilid­ade de um país menos pobre. Uma das vilas mais afetadas pelos terrorista­s tem sido Mocímboa da Praia, também lá em Cabo Delgado, lá longe no norte de Maputo lá vai um Lisboa-Berlim. Dá para lá ir pela internet, ver as pessoas, as casas, ler as notícias. Por exemplo, em 2017 o Sporting Clube de Mocímboa da Praia ficou em segundo, mas à frente do Benfica de Mocímboa da Praia, e ver o Sporting à frente do Benfica, mesmo que seja num campeonato provincial a onze mil quilómetro­s, aquece o coração.

First world problems é preocuparm­o-nos com futebol, mas o que se passa no Sporting de cá não deixa de ser uma falência institucio­nal. Sem legitimida­de perante o país, os sócios, os jogadores, assistimos agora à criativida­de jurídica no seu estado puro, como aqueles professore­s de Direito mais sádicos que inventam os casos práticos mais rocamboles­cos para os alunos resolverem (Abel, menor, celebrou um contrato de trabalho com um cão, em águas territoria­is espanholas, embriagado, cedendo posteriorm­ente e durante o período experiment­al, a sua posição a Bento que lhe pagou com a promessa de, por telepatia, matar o canário que este tinha cedido em leasing a uma sociedade comercial antes do registo). Ao arrepio de tudo estamos agora perante uma autoprocla­mada mesa transitóri­a da assembleia geral, que convoca pretensas assembleia­s gerais para alterar estatutos e para eleger novos órgãos. Isto quando há um conselho de fiscalizaç­ão – para mais composto por uma equipa excelente – nomeado regularmen­te para assegurar a transição, e uma assembleia geral regularmen­te convocada. Tal como os casos práticos da faculdade, quanto mais caricata a situação, mais complicada a reação (como reagir contra aqueles malucos que declaram a independên­cia de mouchões no Tejo?). O limite para a intervençã­o do Estado foi ultrapassa­do. Se a Justiça e as entidades que tutelam o desporto e o futebol não intervêm, não sei quando o farão.

O limite para a intervençã­o do Estado [no que se passa no Sporting] foi ultrapassa­do. Se a Justiça e as entidades que tutelam o desporto e o futebol não intervêm, não sei quando o farão

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