Estado limite
Esqueci-me de dizer uma coisa e não gosto de me esquecer de dizer coisas, mesmo que já não venham a propósito. Vou dizer na mesma porque tem que ver com limites de intervenção do Estado, e é tema que muito me fascina. Era sobre a eutanásia, e o que me esqueci é isto: se viera a ser aprovada uma lei que permita a eutanásia, só o Serviço Nacional de Saúde deve poder praticá-la. Aliás, assim devia ser com a interrupção voluntária de gravidez. Se admitimos intervenções limite sobre a vida humana, e todos de ambos os lados da barricada admitem que estas são decisões complexas e limite, então aí apenas deve estar o Estado. A garantia de estar o Estado suplanta qualquer outro argumento, desde logo o do dinheiro dos meus impostos usados para isso, porque se há coisa para a qual serve o dinheiro dos nossos impostos é precisamente para executar as decisões-limite, garantir o cumprimento dos procedimentos definidos, e fazer que a comunidade reparta o custo moral da decisão difícil que decidiu tomar.
Mesmo aquelas decisões com as quais não concordamos, sobretudo essas, porventura devem ser feitas com o dinheiro dos nossos impostos da forma mais direta possível. Pela mesma razão que não deve haver prisões privadas nem cemitérios privados, quando o Estado quer interromper a vida deve ser ele a fazê-lo. Não apenas assim se permitirá o controlo do processo, como definir sem ser a tracejado a linha do fim, o que acontece apenas quando nesse limite é ainda o Estado que segura a caneta.
O problema principal é sempre de saber onde começam e acabam as coisas, fronteiras perdidas dos âmbitos e limites. Onde deve parar e começar o direito, o Estado. E por vezes o Estado é ele que está em risco. Em Cabo Delgado, província do noroeste de Moçambique, que faz fronteira com a Tanzânia, na semana passada, ao que parece, extremistas islâmicos do movimento Ansar al-Sunna decapitaram dez pessoas, incluindo uma criança, na vila de Palma. Os ataques inserem-se num movimento mais vasto de insurgência islâmica que tem vindo a verificar-se desde 2015, que inclui ataques a aldeias, postos da polícia e assassínios seletivos. O governo começou por negar, mas tem feito prisões e contra-atacado. Diz-se ser uma célula que treinou elementos na Tanzânia e no Sudão. Moçambique, um dos países mais pobres do mundo, com poucas esperanças de sair da cauda da lista a não ser através da gestão criteriosa dos recursos naturais, tem agora mais isto com que se preocupar. E é precisamente as grandes descobertas de gás na bacia do Rovuma que estes ataques visam, adiando assim a possibilidade de um país menos pobre. Uma das vilas mais afetadas pelos terroristas tem sido Mocímboa da Praia, também lá em Cabo Delgado, lá longe no norte de Maputo lá vai um Lisboa-Berlim. Dá para lá ir pela internet, ver as pessoas, as casas, ler as notícias. Por exemplo, em 2017 o Sporting Clube de Mocímboa da Praia ficou em segundo, mas à frente do Benfica de Mocímboa da Praia, e ver o Sporting à frente do Benfica, mesmo que seja num campeonato provincial a onze mil quilómetros, aquece o coração.
First world problems é preocuparmo-nos com futebol, mas o que se passa no Sporting de cá não deixa de ser uma falência institucional. Sem legitimidade perante o país, os sócios, os jogadores, assistimos agora à criatividade jurídica no seu estado puro, como aqueles professores de Direito mais sádicos que inventam os casos práticos mais rocambolescos para os alunos resolverem (Abel, menor, celebrou um contrato de trabalho com um cão, em águas territoriais espanholas, embriagado, cedendo posteriormente e durante o período experimental, a sua posição a Bento que lhe pagou com a promessa de, por telepatia, matar o canário que este tinha cedido em leasing a uma sociedade comercial antes do registo). Ao arrepio de tudo estamos agora perante uma autoproclamada mesa transitória da assembleia geral, que convoca pretensas assembleias gerais para alterar estatutos e para eleger novos órgãos. Isto quando há um conselho de fiscalização – para mais composto por uma equipa excelente – nomeado regularmente para assegurar a transição, e uma assembleia geral regularmente convocada. Tal como os casos práticos da faculdade, quanto mais caricata a situação, mais complicada a reação (como reagir contra aqueles malucos que declaram a independência de mouchões no Tejo?). O limite para a intervenção do Estado foi ultrapassado. Se a Justiça e as entidades que tutelam o desporto e o futebol não intervêm, não sei quando o farão.
O limite para a intervenção do Estado [no que se passa no Sporting] foi ultrapassado. Se a Justiça e as entidades que tutelam o desporto e o futebol não intervêm, não sei quando o farão