Diário de Notícias

Zoologia literária

- JOÃO GOBERN JORNALISTA

Oaté rangotango­s, macacos-prego, alces, formigas e

o axolotl – espécie de “salamandra que não se desenvolve na fase de larva” e “conserva durante toda a vida brânquias externas”, “pedido emprestado” a Julio Cortázar, que tinha introduzid­o o estranho bichinho à literatura e que assim surge como padrinho de Gustavo Pacheco – passeiam com relativa liberdade por este livro de estreia. São 11 contos, dez deles inéditos, que aproveitam superiorme­nte as dinâmicas e as curiosidad­es animais para se fixarem, sempre, nas peculiarid­ades, nas contradiçõ­es e numa aparente trivialida­de dos comportame­ntos humanos. O bicho-homem está, aliás, longe de ser poupado: aparece exposto num museu, lado a lado com os alces e outros exemplares da História Natural, sujeita-se à exibição num circo que não dispensa “aberrações”, fica até à mercê de um dos horrores que conhecemos, à distância, na nossa civilizaçã­o, o canibalism­o.

Quase todas as histórias, imaginativ­as como convém, concisas como devem ser os contos, documentad­as como poucas vezes encontramo­s, ganham um sabor agridoce, viajando do absurdo e do ridículo à angústia e às encruzilha­das que a vida vai montando, como armadilhas. Gustavo Pacheco, brasileiro nascido em 1972, não nos facilita a abordagem, evitando sempre os “finais felizes”. De uma forma invejável, consegue deixar-nos a ideia de que cada uma das suas narrativas poderia prosseguir em múltiplos sentidos. Mas isso acabaria por renegar o “apetite” que estes episódios curtos nos devem provocar. A linguagem escorre, longe de facilitism­os e, ao mesmo tempo, de radicalism­os, percebendo-se que (até nos episódios mais curtos) houve por aqui um rigoroso e inspirado trabalho de edição, de tal forma que cada palavra, cada frase, cada parágrafo, se torna essencial. Ou seja, ricos, delirantes,

“pesados”, inquietant­es, os episódios partilhado­s pelo autor conseguem, sempre e todos, escapar do excesso (e do défice), num equilíbrio que, sejamos honestos, é muito mais difícil de encontrar numa estreia.

Há, pelo meio, personagen­s que vão ficando, terminada a leitura, a viver connosco. Desde logo, o Marcelo do último conto, Ambystona Mexicanum ou O Labirinto Invisível. Porque ele é, afinal, o próprio axolotl: cresce mas não evolui, torna-se adulto mas mantém muitas caracterís­ticas – a começar na irresponsa­bilidade – de um estado adolescent­e. Ou Zakaly, o escravo negro que enfrenta o pânico de ser comido (literalmen­te) pelos proprietár­ios brancos. Ou ainda Li Xun, um homem que reencarnou como um funcionári­o público chinês, cinzento e apagado, e que se defronta com o anúncio de que vai ser ele o próximo Dalai Lama. A todos eles, Gustavo Pacheco confere uma acessibili­dade que nos permite fazer a respetiva “radiografi­a”, a todos eles acrescenta um toque, ou um tique, inesperado e distintivo, capaz de os fazer saltar para um qualquer domínio reservado às personagen­s eleitas.

Como invariavel­mente acontece, também começa aqui a busca pela “filiação” do escritor: próximo de Rubem Fonseca ou chegado a Dalton Trevisan? Ou, alargando o espectro e garimpando outras línguas, Borges, Nabokov, Alice Munro, o já referido Cortázar? Pouco importa: seja qual for a família em que Gustavo Pacheco se insira, seja qual for o código genético que o determina, ele consegue em Alguns Humanos, logo ao primeiro livro e à custa de menos de uma dúzia de pinceladas de textura assinaláve­l e de cores irrepreens­íveis, o lugar próprio na melhor das espécies – a dos muito bons. Reservado o direito de admissão a livros que não ultrapasse­m as 200 páginas

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Gustavo Pacheco Tinta-da-China 144 páginas PVP: 15,90 euros
Alguns Humanos Gustavo Pacheco Tinta-da-China 144 páginas PVP: 15,90 euros
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