Diário de Notícias

Os Donald de Carvalho

- ANSELMO CRESPO SUBDIRETOR DA TSF

Este não é um texto sobre Bruno de Carvalho. E muito menos sobre Donald Trump. Este não é um texto sobre sportingui­stas, nem tão-pouco sobre os americanos. Este é um texto sobre fanáticos, trolls e pessoas doentes que se movem pela demagogia e pelo populismo. Este é um texto que pretende refletir sobre todos aqueles que usam duas palas nos olhos e que por isso acham que o mundo é monocromát­ico.

No outro dia comentava com um grande amigo, que vive nos Estados Unidos há muitos anos, que permanece um mistério para mim como é que os americanos entregaram a presidênci­a a Donald Trump. Depois de terem eleito por duas vezes Barack Obama – e sendo quase certo que voltariam a reelegê-lo se ele pudesse candidatar-se –, como é que se passa de Obama para Trump? A manipulaçã­o eleitoral explica muita coisa, mas não explica tudo. Houve, apesar de tudo, uma votação maciça em Trump e isso aconteceu por alguma razão.

A explicação do meu amigo tem tanto de simples como de assustador­a: Trump ressuscito­u muito eleitorado abstencion­ista, aquilo que se acreditava serem franjas da sociedade que há anos que não iam votar e que voltaram a identifica­r-se com o discurso de um político, depois de décadas a dizer mal de tudo e todos sem meter os pés numa urna de voto. Os racistas, os xenófobos, os nacionalis­tas envergonha­dos, todos eles foram votar em Trump porque finalmente apareceu um político que diz o que eles pensam e faz o que eles gostavam de fazer. O mais assustador não é ainda existirem estas pessoas, é percebermo­s, de repente, que elas existem em número suficiente nos Estados Unidos para eleger um louco para a Casa Branca.

A comunicaçã­o social americana fez o resto. Ao contrário do que se possa pensar, não foi só a Fox, a One America News, a Trump TV ou a Infowars que ajudaram Trump a ser eleito. Foram estações de referência como a CNN, ou jornais de nomeada como o

The New York Times e o TheWashing­ton Post, que decidiram transforma­r-se numa espécie de oposição política e, com isso, ajudaram Trump a ser eleito. Quando mais de 90% das notícias publicadas pelas televisões americanas sobre Donald Trump são negativas, isso é apenas campanha gratuita para o presidente e combustíve­l para os seus apoiantes.

O futebol é um fenómeno em tudo idêntico à política, mas para pior. E, nos dias que correm, Donald Trump está para alguns americanos como Bruno de Carvalho está para alguns sportingui­stas. Sublinho alguns. Também o presidente do Sporting parece ter conseguido ressuscita­r uma franja de sportingui­stas que viviam escondidos pelos cafés deste país e na escuridão das redes sociais. Adeptos que, apesar de toda a loucura instalada, continuam cegos e alapados a um líder que consegue mobilizar um exército acéfalo, mas comprometi­do.

No outro dia, no elevador, cruzei-me com um sportingui­sta enquanto eu, por dever profission­al, ouvia um comício de Bruno de Carvalho, disfarçado de conferênci­a de imprensa. “Estão a tentar fazer-lhe a folha, mas ele tem toda a razão”, atirou este adepto para meu grande espanto. Ainda tentei argumentar – não sendo eu sportingui­sta – com factos. “Repare, como é possível o presidente de um clube escrever o que escreveu nas redes sociais sobre a sua própria equipa? Que líder é este que vem publicamen­te desfazer os seus? E, já agora, como é que o presidente de um clube deixa que que um grupo de vândalos entre pela Academia de Alcochete para agredir a equipa futebol e não retira daí consequênc­ias?” Tempo perdido. Dois minutos de conversa (o tempo que o elevador demorou a subir quatro andares) e desisti. É impossível vencer a tese da cabala, da vitimizaçã­o, do herói que resiste aos poderes instalados.

Essa é uma das principais caracterís­ticas dos fanáticos e dos trolls: eles são, por norma, lapas daquelas difíceis de descolar. O que lhes falta em pensamento próprio e informado, sobra-lhes em verborreia sempre em defesa do líder mais populista que lhes apareça pela frente. Confundem combativid­ade com educação e racionalid­ade com demagogia. Os fanáticos e os trolls são, normalment­e, cobardes que têm nas redes sociais o ecossistem­a perfeito para sobreviver­em.

O futebol, percebi eu há muitos anos, é do domínio da irracional­idade. A todos os níveis. Dos dirigentes aos treinadore­s, jogadores e adeptos, é como se existisse um chip dentro de cada pessoa que a faz perder todo o discernime­nto, toda a razoabilid­ade. O Sporting é o exemplo mais recente, mas o Benfica e o Porto também o são e, neste campeonato da loucura total, ninguém pode atirar pedras.

E aqui, como nos Estados Unidos, a comunicaçã­o social não está isenta de culpas. O que se passa no Sporting é notícia e não pode ser ignorado, mesmo que se corra o risco de se estar a alimentar um “monstro”. Mas há uma diferença entre informar e ser-se apenas oportunist­a. Montar debates estéreis, com painéis de comentador­es que ora repetem lugares-comuns ora inventam “notícias” em primeira mão, é apenas uma forma básica de tentar conquistar audiências. Dar voz a quem “diz tudo sem papas na língua”, ainda que nada diga, porque nada pensa, nem nada sabe, é apenas abdicar de qualquer critério editorial e só serve para alimentar um clima de ódio. E no caso de Bruno de Carvalho, como no caso de Donald Trump, não são apenas os tabloides a entrar neste terreno lamacento, são também, muitas vezes, os órgãos de comunicaçã­o social de referência. Fazê-lo, desta forma, é ajudar a alimentar um “exército” de adeptos que são atiçados a cada debate, a cada direto à porta do estádio, a cada editorial disfarçado de notícia.

Quero acreditar, ainda assim, que a maioria dos adeptos do Sporting, ou de outro clube qualquer, apenas se dá ao luxo de perder a racionalid­ade na emoção de um jogo de futebol. Mesmo que isso implique embirrar com o árbitro, atirar um impropério ou outro ao adversário ou ficar triste com a sua própria equipa. Porque os outros, os fanáticos, os trolls e os doentes, estão todos a mais no futebol. E, já agora, na política.

O futebol, percebi eu há muitos anos, é do domínio da irracional­idade. A todos os níveis

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