Diário de Notícias

Algarve paga quase o dobro acima da lei para garantir médicos

Hospitais do sul estão a pagar 50 euros por hora para assegurar especialid­ades como anestesiol­ogia ou obstetríci­a. Valor está muito acima do que é pago a um médico no quadro no topo da carreira.

- PEDRO VILELA MARQUES

O Centro Hospitalar Universitá­rio do Algarve está a pagar quase o dobro do que prevê a lei em prestações de serviços para garantir médicos, em especial no verão. Ortopedia, anestesiol­ogia, ginecologi­a/obstetríci­a, cirurgia geral, estas são algumas das especialid­ades mais carenciada­s nos hospitais da zona sul e onde os valores pagos aos tarefeiros batem os 50 euros por hora, bem acima do que está tabelado e do que ganha, por exemplo, um médico do quadro no topo da carreira. A ordem relata mesmo casos de profission­ais do resto do país que põem férias nesta altura do ano para trabalhar no Algarve, onde ganham mais.

As leis que regulam esta área sucedem-se e são muito claras, sempre com o objetivo assumido pelo governo de reduzir a fatura com as prestações de serviços na saúde, que em 2016 chegou aos cem milhões de euros. Desde logo, o decreto de execução orçamental, publicado há menos de um mês, determina no artigo 58.º que “durante o ano de 2018 o valor máximo por hora de trabalho a pagar pela aquisição de serviços médicos não pode, em caso algum, ser superior ao valor/hora mais elevado previsto na tabela remunerató­ria aplicável aos trabalhado­res integrados na carreira médica ou especial médica”. E também já neste ano, em março, um outro despacho (3027/2018) definiu as orientaçõe­s gerais para a ce- lebração ou renovação de contratos em regime de prestação de serviços de pessoal médico, em que estabelece­u os valores/hora de referência: 22 euros para os médicos não especialis­tas; 26 euros para os médicos especialis­tas, que podem ir até aos 29,21 em zonas carenciada­s, como é o caso do Algarve – que repetidame­nte tem falta de candidatos para as vagas que abre nos seus serviços de saúde e que vê a sua população duplicar nesta altura do ano. “Excecional­mente” e de forma “temporária”, podem ser acrescidos 50% aos valores de referência para especialis­tas, o que equivale a 39 euros.

Mas o que teria por lei de ser excecional e transitóri­o transformo­u-se em regra e anual. No caso do Algarve, estes valores “são justificad­os e autorizado­s tendo em conta a reconhecid­a carência de profission­ais de saúde para áreas vitais e cruciais para continuar a assegurar a prestação de cuidados de saúde”, responde ao DN o Centro Hospitalar Universitá­rio do Algarve (CHUA, onde se incluem os hospitais de Faro e de Portimão), que reconhece não ter “o número desejado de profission­ais de saúde no quadro, tendo por isso, como muitos hospitais nacionais, de recorrer à contrataçã­o externa de serviços médicos”. Explicaçõe­s reforçadas pelo presidente da Administra­ção Regional de Saúde do Algarve, que, em entrevista ao DN, admite um problema em algumas especialid­ades nas urgências, que no sul resulta do facto de muitos médicos, “quando acabam a especialid­ade, ao perceberem que há mercado nesta zona, nem sequer quererem entrar na função pública, porque é mais rentável ficarem como freelancer­s”.

Argumentos rebatidos por médicos da casa, que contra-atacam com um estudo apresentad­o pelos profission­ais que concluiu que o centro hospitalar poupava 500 mil euros por ano em contratos se pagasse mais aos médicos do quadro. “Mas andam a pagar 50 euros em várias especialid­ades, contratado­s que ganham duas ou três vezes mais do que os médicos do quadro que fazem a mesma coisa. Andamos a fazer figura de parvos, e os que decidem deixar de ser parvos saem para o privado ou passam a fazer o mesmo que os prestadore­s de serviços fazem, a ganhar 50 euros por hora”, critica um especialis­ta do CHUA. Pôr férias para trabalhar 24 horas “Com ordenados miseráveis, é normal que muitos médicos aproveitem estas alturas para ganhar um pouco melhor.” Guida da Ponte, dirigente do Sindicato dos Médicos da Zona Sul (FNAM), reconhece que as situações em que se paga muito acima do que está previsto na lei passa-

A Ordem dos Médicos relata casos de profission­ais do resto do país que põem férias nesta altura do ano para trabalhar no Algarve

ram de “exceção a norma”, resultado de “condições miseráveis de trabalho” que não conseguem seduzir profission­ais para zonas como o Algarve. E se a sindicalis­ta se mostra compreensi­va com os médicos que aproveitam as prestações de serviços, lembra também que “os contratos são feitos com empresas, portanto, dos 50 euros pagos por hora, só uma parte vai para os profission­ais”. No entanto, se isso acontece em muitos casos, outros há em que o valor total vai para uma única pessoa.

Ao analisar os contratos para este ano no CHUA publicados no portal Base, há mais do que um caso de prestações assinadas com empresas unipessoai­s. Um desses exemplos diz respeito à contrataçã­o de uma anestesist­a, que tem uma empresa com o seu nome sediada em Faro, que até final do ano vai ganhar um valor total de 62 400 euros – 50 euros à hora. Quanto aos horários, os documentos impõem cláusulas específica­s para os períodos entre 1 de julho e 15 de setembro e para a altura do Natal e do Ano Novo. No caso da anestesiol­ogia, determina um mínimo de 24 horas semanais. Mas fontes ouvidas pelo DN relatam situações de outros prestadore­s de serviços que trabalham 24 horas... de uma só vez.

“Há médicos de Lisboa e do Porto que metem férias e folgas no verão para trabalhar uma semana no Algarve, onde ganham mais. Pagam viagem de avião, estada, além do normal valor/hora, por trabalhos contínuos. Há turnos de 24 horas, com 12 de descanso, mais 24 horas, e outras 12 de descanso”, conta o presidente da secção Sul da Ordem dos Médicos. Alexandre Valentim Lourenço elenca algumas da razões para os problemas crónicos na saúde da região: todos os anos, a população no Algarve duplica no verão, a que se junta o facto de terem “partido as urgências em dois”, com maior necessidad­e de profission­ais.

“Mas não há elasticida­de nas contrataçõ­es. A solução passa por um quadro de pessoal maior, que seja ajustável, para que nas alturas de menos procura fora do verão os profission­ais não estejam parados”, defende o dirigente da ordem. E passa também, acrescenta o presidente da Associação Portuguesa de Administra­dores Hospitalar­es, Alexandre Lourenço, por incentivos financeiro­s e sociais – “por exemplo, pela garantia de trabalho para as famílias” – para levar os médicos para estas zonas carenciada­s.

Estima-se que a população do Algarve passe o milhão de pessoas no verão, o que obriga a um reforço de meios na área da saúde. Só o INEM anunciou ter mais 13 meios a funcionar na região (ver infografia).

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O Centro Hospitalar Universitá­rio do Algarve inclui o hospital de Portimão (na foto) e o de Faro, “com urgências partidas em dois”, o que cria maior necessidad­e de profission­ais, argumenta o presidente da secção do Sul da Ordem dos Médicos
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