Luis Sepúlveda “Nem todos os jovens são estúpidos”
Luis Sepúlveda raramente perde uma Feira do Livro de Lisboa e os leitores também nunca o deixam em paz, afinal tem sempre das maiores filas para dar autógrafos. Este ano não houve livro novo mas uma reedição de Os Piores Contos dos Irmãos Grim, que escreveu a quatro mãos com o uruguaio Mario Delgado Aparaín. O romance data de 2004 e Sepúlveda considera que não se deve atualizar uma linha sequer na troca de cartas entre dois professores universitários que estudam a dupla Abel e Caim Grim – não Grimm como os originais –, que refazem uma parte da história do século XX da América Latina. Um livro no qual surgem personagens chamadas de Francisco Sinatra ou António [ Tony] Curtis, cuja transfiguração Sepúlveda explica assim: “Antigamente, no cinema, havia legendas que eram adaptadas ao castelhano e transformavam os nomes dos personagens. Se no ecrã aparecia que era um filme protagonizado por Anthony Quinn, a legenda dizia que era por António Quinn. O mesmo se passava, por exemplo, com Frank Sinatra. E no imaginário popular ainda há muita gente que recorda os nomes de bastantes artistas na sua forma castelhana.” Ao ler-se este livro parece que estamos a ver um filme de Quentin Tarantino! Concordo! Porque é um livro escrito a quatro mãos e queríamos fazer uma coisa divertida para partilhar com o leitor. Acho que só deste modo se combate a má imagem que se tem dos intelectuais, que estão sempre de mau humor e só pensam nos dramas que estão a acontecer na sociedade. Então, propusemo-nos refletir de forma literária mas sem esquecer o ponto de vista da ironia. Como é que se monta um projeto a quatro mãos, como foi este caso? Começámos com uma troca de correspondência entre dois professores que estudam a vida das personagens, os irmãos Grim. Que são cantores populares que vivem em atuações aqui e acolá, festas públicas, circos e festivais. A intenção era reproduzir através deles a época em que viveram e assim mostrar que tudo pode acontecer mesmo que pareça impossível. Há 30 anos ninguém acreditaria que um ator medíocre pudesse ser presidente dos Estados Unidos, mas foi isso que se passou com a eleição de Ronald Reagan. E se dissessem há cinco anos que um dia um milionário que merece estar num manicómio seria também presidente dos EUA, dir-se-ia que seria impossível, mas temos Donald Trump. Ou seja, este livro mostra ao leitor de uma maneira muito irónica que é bem possível misturar-se ficção com a realidade. Como é escrever a quatro mãos? Foi uma boa experiência. Preparávamos cada capítulo em conjunto e depois alternávamos a liderança da escrita. Entre as personagens há um grande destaque para os carteiros. Porquê? Eram o reflexo de uma época que nós ainda vivemos – somos ambos de 1949 – e víamos a importância do correio para as pessoas. Não é como hoje, quando se perguntarmos a um jovem de 15 anos numa rua de Lisboa onde é a estação dos correios, ele nem sabe do que estou a falar. Para ele existe o WhatsApp, talvez o e-mail. Portanto, incluímos os carteiros como um sinal de nostalgia perante uma instituição que morreu e aonde muita gente ia buscar correspondência quando morava longe. Este livro é de 2004. Fizeram alguma atualização? Não mudámos nada. Quando o livro surgiu foi em simultâneo em Portugal, Argentina, Uruguai, Chile e México, depois foi traduzido em França e em Itália. E houve também traduções na China e no Japão, que nos surpreenderam porque foram capazes de manter o humor original. Mudar agora seria violentar o livro e é melhor deixar a marca do seu tempo. Há aqui muito conhecimento das pessoas e da geografia. Foi investigação? Não, é de conhecimento próprio e situações que nos estão próximas. Até porque, quando falamos de folclore, não existem factos que assegurem uma raiz científica por ser uma invenção da imaginação. E nós, autores, mantivemos esse espírito criativo. No entanto, a parte antropológica está documentada com rigor. Mas foi impossível não investigar todos aqueles instrumentos musicais? São instrumentos que existem de forma corrente, em que destacámos o mais popular instrumento musical da Bolívia e Peru: o charango. Que se faz com a carapaça de um animal e provocou desde o seu aparecimento uma euforia que levou quase ao extermínio da espécie. Leu os contos dos Irmãos Grimm? Sim, li-os quando era criança. Não gostava de todos eles porque havia muito moralismo e demasiada crueldade em muitos dos contos. No entanto, nas edições ilustradas a narrativa era aliviada dessas situações muito violentas. Nestes vossos contos dos Irmãos Grim não pretendem dar lições de moral? Não, a intenção do livro é contar sob a forma da ficção a vida destes dois personagens, que não são os alemães – só tem um M –, mas serão, provavelmente, descendentes desses Irmãos Grimm e que terão chegado em alguma vaga de imigração para a América Latina. A nossa vontade era estabelecer uma ligação por muito absurda que fosse entre o mundo que se viveu em tempos através dessa troca de correspondência entre os dois professores que colocámos a estudar a história destes Irmãos Grim. Quem são afinal estes Irmãos Grim? Caberá ao leitor encontrar a resposta. Nós construímos os dois através de várias personagens que Mario encontrou no Brasil, Uruguai e Paraguai, e as que eu achei no Chile, Argentina, Peru e Equador. Artistas itinerantes, contadores de histórias e poetas populares, todos vítimas de uma grande incompreensão por parte do público para quem atuavam. Tinham uma vida muito insegura, sem casa e sempre a viajar. São, portanto, verdadeiros porque resultam de uma síntese de pessoas que existiram de verdade. Este livro possui um alto grau de loucura. Qual dos dois foi o mais destrambelhado a escrever? Creio que ambos, tanto que as nossas mulheres achavam que ultrapassávamos os limites. Elas liam as cartas que trocávamos e percebiam que existia em nós um verdadeiro delírio. Mas não se importavam e pediam para não abandonarmos esse delírio porque gostavam. No livro só estarão um dez por cento de tudo o que escrevemos ao todo. Por estranho que pareça, não existem heróis neste livro. Foi intencional? Os dois que existem são totalmente anti-heróis, porque tudo está contra eles e eles contra nada. Queríamos mostrar dois personagens de grande pureza, que eram péssimos cantores, maus a tocar guitarra e poetas horríveis, mas com uma característica importante, a de nunca desistirem. Falando de heróis, estamos no 50.º aniversário do Maio de 68. Guardou para si alguns heróis daquele ano? Sim, até porque o Maio de 68 não aconteceu só em Paris. Também os estudantes do México protestaram e foram massacrados por isso; na Argentina, morreram mais de mil estudantes e no Chile ajudou a continuar uma grande greve dos estudantes e professores do secundário e da universidade, a que se juntaram operários de várias fábricas, numa exigência pela democratização do ensino durante três anos, até se formar o governo de Salvador Allende em 1970. E houve mais gente corajosa na Europa do Leste, por exemplo. Não foi só em Paris. Maio de 68 tem muitos jovens na sua
génese. Hoje, os jovens fariam um movimento como aquele? Não sei, agora talvez não haja paralelo na situação da história. No entanto, não faltam jovens muito entusiastas e que se assemelham aos de 68, os que estão a lutar na Colômbia pelo processo de paz ou a salvarem refugiados que atravessam o Mediterrâneo em barcos. São anónimos que têm oespírit ode 68 eéa melhor homenagem que se lhes pode fazer. Na Europa, pelo que diz, a juventude estará assim tão empenhada? Uma parte está preocupada. Seria injusto dizer que toda a juventude está descomprometida. Há jovens que mantêm esse valor fundamental queéo da solidariedade. Como colaboro com os Médicos sem Fronteiras, vejo-os em vários países. Franceses, portugueses, espanhóis, belgas e alemães, que têm entre 18 e 25 anos e estão a ocupar o seu tempo em missões humanitárias. Isso mostra que nem todos os jovens são estúpidos, e que muitos deles têm sensibilidade para boas causas. Quando veio à Feira do Livro estava em queda o governo espanhol, país onde vive. Como vê a nova realidade? O novo governo está em minoria e com uma direita feroz na oposição. Há um exemplo a seguir: o português. Os leitores gostam das suas experiências ou preferem livros mais políticos? Os leitores deram boa resposta quando mudei de registo e consideraram que era uma outra maneira de contar a história. Da primeira vez que publiquei um fábula para jovens também ficaram muito surpreendidos, mas a enorme resposta que tive à História de Uma Gaivota e do Gato Que a Ensinou aVoar mostrou que gostavam. Creio que os meus livros são para leitores de todas as idades. Nunca pensou escrever uma história do século XX da América Latina? Não, porque Eduardo Galeano já escreveu AsVeias Abertas da América Latina. Que é uma obra-prima e, ao elevar-se tão alto, não vale mais a pena repeti-lo. Há muitas outras histórias para contar. Prefere escrever livros mais políticos ou histórias menos comprometidas? Sempre olhei para a literatura como um todo e há certas histórias que, não parecendo, se sustentam numa realidade política. Porque tudo é político! A literatura apela aos sentimentos, à emoção e à sensibilidade, que são todas situações determinadas por questões políticas. Somos bons ou maus por questões políticas. Somos egoístas ou generosos devido à educação recebida, que é política.
“O Maio de 68 não aconteceu só em Paris.Também os estudantes do México protestaram e foram massacrados; na Argentina, morreram mais de mil” “Há 30 anos ninguém acreditaria que um ator medíocre pudesse ser presidente dos EUA e Reagan foi”