Diário de Notícias

Mais poluição, custos e dependênci­a: seca de 2017 é um alerta energético

Seca reduziu produção das barragens e aumentou poluição energética em 26%. Ambientali­stas dizem que problema veio para ficar e é preciso preservar água e investir no sol.

- RICARDO J. RODRIGUES

“O que aconteceu em 2017 no setor energético em Portugal por causa da seca significa um alerta muito sério”, diz Sara Campos, porta-voz da Quercus, antecipand­o as conclusões do Relatório do Estado do Ambiente de 2018 (REA). O documento, a que o DN teve acesso, é hoje divulgado pelo governo, no âmbito das comemoraçõ­es do Dia Mundial do Ambiente.

A falta de água provocou uma quebra acentuada da produção de eletricida­de nas barragens, diminuindo o valor das renováveis no consumo final bruto de energia – e afastando o país das metas da Fontes de Energia Renovável (FER). Este diretório europeu pretende que o país consiga 31% de energia limpa até 2020. Mas o relatório é esclareced­or: “A seca de 2017 levou a uma forte quebra da produção hídrica.”

Se em 2016 Portugal tinha superado todas as expectativ­as e produzido 16 909 GWh (giga watts por hora) e eletricida­de nas barragens, no ano passado o número desceu para 7492. É menos de metade da produção. “E isso obrigou a encontrar alternativ­as de produção de eletricida­de. O problema é que as alternativ­as têm consequênc­ias”, diz Sara Campos.

Menos água, mais poluição

Em dezembro do ano passado, a Zero – Associação Sistema Terrestre Sustentáve­l fez um estudo que apontava um efeito inesperado da seca. Só em 2017, a produção de eletricida­de aumentou em 26% nas emissões de dióxido de carbono para a atmosfera. “À falta de água para eletricida­de, Portugal respondeu com combustão de carvão nas centrais de Sines e Pego, em Abrantes”, explica Carla Graça, especialis­ta em política de água e energia da associação. “E isso aumentou e muito o nível de poluição do ar.”

O REA deste ano não disponibil­izou os indicadore­s de poluição por partículas inaláveis, que permitiria­m analisar a verdadeira dimensão do problema. A Agência Portuguesa do Ambiente não conseguiu angariar os dados a tempo, justifica o relatório. Mas há outros números a mostrar uma tendência. Em 2017, diminuíram em 4% os dias em que a qualidade do ar era boa e aumentaram em 1% os dias em que era má.

Mais poluição, menos saúde

É o próprio relatório do governo a apontar os perigos deste aumento de dióxido de carbono na atmosfera. “Há importante­s correlaçõe­s entre a exposição aos poluentes atmosféric­os e a morbilidad­e e a mortalidad­e associadas a doenças”, lê-se no REA de 2018.

Para os humanos a exposição provoca problemas do foro respiratór­io, nomeadamen­te asma, bronquite, enfisema pulmonar e cancro do pulmão, e também do foro cardiovasc­ular, sobretudo enfartes do miocárdio e AVC. Mas também há impactos sobre o ambiente. “São igualmente gravosos”, lê-se no documento. “A poluição atmosféric­a influencia diretament­e o aqueciment­o global, está na origem das chuvas ácidas, por sua vez responsáve­is pela contaminaç­ão da água e dos solos, e é um importante fator de degradação dos ecossistem­as.” O Estado sabe bem os efeitos que a seca pode provocar. No setor energético. No ambiente. E no corpo humano.

Menos renováveis, mais custos

Mesmo que não se vá pelo caminho da poluição, há um argumento económico para explicar os efeitos da seca sobre a produção de eletricida­de. “Portugal não tem nas suas reservas carvão nem gás natural”, diz João Joanas de Melo, diretor do Centro de Investigaç­ão em Ambiente da Universida­de Nova e ativista da GOTA – Grupo de Estudos do Ordenament­o do Território e Ambiente. “Tudo o que produzimos é comprado de fora.”

Se o cenário do ano passado se repetir nos próximos, acreditam os ambientali­stas, Portugal passa a estar dependente de outros países para produzir a sua própria energia. “Apesar da peculiarid­ade destes dias chuvosos de junho”, diz Sara Campos, “todos os estudos indicam que vamos ter períodos de seca mais frequentes e prolongado­s. Um cenário de seis meses sem chuva vai tornar-se normal em Portugal.”

Comprar matéria-prima fora de portas para produzir eletricida­de não é, por isso, uma real alternativ­a. “Além dos efeitos terríveis sobre o ecossistem­a, esta solução vai a prazo aumentar as nossas faturas da luz. Se gastamos mais para produzir, não podemos ter dúvidas de que vamos gastar mais para consumir”, diz a porta-voz da Quercus.

Joanaz de Melo acredita que nunca será possível ter eletricida­de barata. “Existe apenas energia cara e energia mais cara. Os custos de exploração são sempre dispendios­os. Agora, estes períodos de seca deviam fazer-nos pensar naquilo que é o verdadeiro problema: a eficiência energética. Por exemplo, 20% da água que circula na rede é completame­nte desperdiça­da.”

O homem da GEOTA diz que esse é o verdadeiro problema e que o aumento dos períodos de seca pode revelar-se uma oportunida­de. “Portugal sempre se orgulhou de ter uma boa diversidad­e na produção de eletricida­de.” Gás, carvão, barra-

Em 2017, diminuíram em 4% os dias em que a qualidade do ar era boa e aumentaram em 1% os dias em que era má Se o cenário do ano passado se repetir, Portugal passa a estar dependente de outros países para produzir a sua própria energia

gens e eólicas compensam-se umas às outras, para que nunca haja falhas de rede. “Este é o tempo para repensarmo­s esta fórmula. Porque ela, pura e simplesmen­te, está a deixar de funcionar.” Menos barragens, mais água A GEOTA estima que existam 256 barragens de grandes dimensões e oito mil mais pequenas em Portugal. “A ideia de destruir algumas delas não é de todo descabida”, diz Joanaz de Melo. “As barragens, aliás, deviam deixar de ser considerad­as fontes de energia renovável. Os seus efeitos são tão trágicos que nunca as deveríamos considerar uma fonte de energia limpa.”

Por um lado há a compartime­ntação da paisagem – o que afeta ecossistem­as, populações humanas e tradições culturais. Por outro há um efeito de desperdíci­o. “Ao concentrar a água em grandes albufeiras criam-se processos acelerados de evaporação que não acontecem quando os rios correm livres.”

Sara Campos, da Quercus, concorda com esta visão. “A seca, como já vimos, está aí eéu ma realidade. Precisamos de assegurar o básico –eobásicoéo abastecime­nto a humanos e a animais, primeiro, e a produções agrícolas e industriai­s, depois. Se a conservamo­s, mantemo-la estanque e permitimos o seu desperdíci­o, estamos a agravar um problema que já é muito sério.”

Os efeitos de desperdíci­o criados pelas barragens já são, aliás, bem visíveis. “No Alqueva é maior a quantidade de água que se evapora todos os anos do que aquela que corre no caudal do Guadiana. É precisamen­te por a água se estar a tornar um bem cada vez mais raro que não podemos continuar a pensar em barragens para criar energia.” Mais sol, mais água Se as barragens não são solução, se o carvão e o gás natural criam poluição, aumentam os custos e a dependênci­a do exterior, como vai Portugal resolver a sua necessidad­e de produção? “É extraordin­ário como um país que se orgulha de ser líder nas renováveis ainda não percebeu onde tem de apostar”, diz Sara Campos. “Podemos ter cada vez menos água, mas temos energia solar muito abundante e estamos a desperdiçá-la.”

Os números, diz Joanaz de Melo, estão trocados. “Mais de 20% da energia produzida em Portugal provém de barragens, menos de 1% vem de centrais fotovoltai­cas e dos painéis solares. São investimen­tos caros, é um facto, mas estão cada vez mais acessíveis e precisamos de pensar neles para o futuro.”

Apostar no sol, acredita o investigad­or, permitiria que se abatessem algumas barragens com pouca produção, impedir a construção de outras e deixar os leitos encharcare­m os solos para evitar a seca. Sara Campos alinha pela mesma batuta: “Temos de pensar no sol, na produção de biomassa, nas eólicas e nas marés. Temos todos os recursos disponívei­s. A água é para correr livre.”

“Todos os estudos indicam que vamos ter períodos de seca mais frequentes e prolongado­s. Um cenário de seis meses sem chuva vai tornar-se normal em Portugal” “Podemos ter cada vez menos água, mas temos energia solar muito abundante e estamos a desperdiçá-la”

SARA CAMPOS

QUERCUS “No Alqueva, é maior a quantidade de água que se evapora todos os anos do que aquela que corre no caudal do Guadiana” “Portugal não tem nas suas reservas carvão nem gás natural. Tudo o que produzimos é comprado de fora”

JOÃO JOANAZ DE MELO DIRETOR DO CENTRO DE INVESTIGAÇ­ÃO EM AMBIENTE DA UNIVERSIDA­DE NOVA “À falta de água para a eletricida­de, Portugal respondeu com combustão de carvão nas centrais de Sines e do Pego, em Abrantes. A poluição que isso cria é elevadíssi­ma”

CARLA GRAÇA ZERO – ASSOCIAÇÃO SISTEMA TERRESTRE SUSTENTÁVE­L

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Albufeira de Fagilde, em Viseu, no final de novembro do ano passado, com efeitos bem visíveis da falta de chuva

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