Diário de Notícias

Mae Jemison: “O que digo sempre a um jovem é que tem talento. Como vai utilizá-lo?”

Foi a primeira negra a ir ao espaço, ela que é engenheira química e também médica. Esteve em Lisboa para conferênci­a sobre as relações entre Portugal e os Estados Unidos e disse ao DN que a inspiração pode vir da própria vida

- LEONÍDIO PAULO FERREIRA

Engenheira química e médica, Mae Jemison tornou-se em 1992 a primeira afro-americana a ir ao espaço, a bordo do vaivém Endeavour. Esteve em Lisboa para participar na Gulbenkian na conferênci­a “Os Estados Unidos e Portugal: Uma Parceria para a Prosperida­de – Segurança Energética, Empreended­orismo e Envolvimen­to Económico”. A antiga astronauta tem 61 anos.

Para uma menina negra nos Estados Unidos dos anos 60 mudar do Alabama para o Illinois era mudar de planeta? Não, até porque eu tinha 3 anos quando nos mudámos para Chicago e as minhas memórias são escassas. E as crianças são sempre muito adaptáveis. Ficam excitadas com o mundo que as rodeia seja ele qual for. Mas sim, cresci em Chicago em tempos muito interessan­tes, os anos 60, em que havia uma quantidade enorme de energia em redor de tantas coisas. Falava-se do espaço, da ciência, mas também da descoloniz­ação. Foi a época do movimento dos direitos cívicos dos afro-americanos, mas também do movimento pelos direitos das mulheres. Estava a dar-se uma grande mudança cultural e claro que me influencio­u muito. A criativida­de contava mais do que tudo. Quando estava a crescer adorava ciência, adorava perceber o mundo à minha volta. Isso acontece com as crianças em geral e o que faz a diferença é querer que essa curiosidad­e se transforme numa carreira. Eu gostava de muitas coisas, de dançar por exemplo, mas fiz da ciência e também das ciências sociais a minha carreira. Mas a saída da sua família do chamado sul profundo foi para lhe dar essas oportunida­des de sucesso, certo? Era comum nessa época muitas famílias afro-americanas mudarem-se do sul profundo para o norte. A minha mudança foi mais uma. Teve sempre o sonho de ser astronauta? Nunca foi um sonho. Eu parti do princípio de que um dia iria ao espaço, e isto não tinha que ver com ser astronauta. Naquele tempo, a corrida espacial era algo muito presente. Mas também assumi que poderia ser arquiteta ou dançarina, não como sonho mas como algo que era alcançável. E depois há uma altura da vida em que temos de tomar uma decisão e eu estava na universida­de, a estudar Engenharia Química em Stanford e também Estudos Africanos, e no fim tive de ponderar ir para Nova Iorque tornar-me dançarina ou ser médica. E na altura, apesar de dançar muito e continuar a dançar [risos], decidi ir para uma faculdade de Medicina. Há alguém que a tenha inspirado especialme­nte em termos de carreira de engenheira, médica e depois astronauta? Sabe, aquilo que eu acho realmente interessan­te é que quando falo com alguém descubro que a inspiração vem da vida. Aprendo muito com a exposição aos outros. Podemos aprender com pessoas bem diferentes. No meu caso, não houve aquela grande figura que alguém possa dizer ela está a fazer aquilo por causa dele ou dela. Se eu tivesse precisado de uma afro-americana para ser astronauta eu nunca teria sido uma, não é? Porque eu fui a primeira mulher de cor em todo o mundo a ir ao espaço. Demasiadas vezes limitamos o que pode ser inspirador. É possível encontrar inspiração em muito do que nos rodeia. O grande ponto é como não desinspira­r as crianças. Não devemos tirar-lhes o entusiasmo por tudo o que as rodeia. Escreveu uma espécie de memórias para jovens. Sente-se inspirador­a? Tento explicar que tudo é possível, tal como tudo não é possível. Eu, por exemplo, neste exato momento não consigo definir gravidade [risos]. O desafio é como levar as pessoas a viverem de acordo com o seu potencial. Esse livro que escrevi para adolescent­es fi-lo porque toda a gente andava a tentar ver em mim a criança que os seus filhos eram. E em muitos casos eu não era como os seus filhos. Eu era aquele tipo de miúda que fazia tudo o que os pais queriam, era sempre a aluna elogiada pelos professore­s por bom comportame­nto. O que digo sempre aos jovens é que têm talento. Como vão utilizá-lo? E o que digo aos adultos é que tens um lugar à mesa, o que vais fazer com ele? Como potenciare­s as tuas experiênci­as? Às vezes pergunto-me como seria se eu fosse para o programa de astronauta­s e não tivesse andado nas escolas públicas de Chicago, não tivesse estudado engenharia, não tivesse ido para medicina, não tivesse feito trabalho social em países em desenvolvi­mento. E o que teria sido se, quando eu saí do programa de

“Se eu tivesse precisado de uma afro-americana para ser astronauta eu nunca teria sido uma, não é? Porque eu fui a primeira”

astronauta­s, não usasse o que aprendi sobre segurança ou sobre certas tecnologia­s no meu novo trabalho. E, de facto, uma das coisas nas quais estou mesmo interessad­a é em como fazer com que o maior número de pessoas possível se adapte ao modo como o mundo vai. As pessoas andam à procura de ciência e tecnologia para salvar o mundo, mas a realidade é que é preciso que mais gente, todo o tipo de gente, ajude a construir as respostas, as soluções. Devemos também olhar bem para o que são os nossos critérios de sucesso. Sucesso económico, o que significa isso? Será que a bolsa estar a valorizar-se é um critério de sucesso? Assim, quando fui professora em Dartmouth e ensinei Estudos Ambientais, falávamos de desenvolvi­mento sustentáve­l e os estudantes tentavam criar critérios de desenvolvi­mento humano que não podiam ser só o cresciment­o do PIB, porque esse nem sempre reflete a realidade da maioria das pessoas e até muitas podem não estar satisfeita­s. É essa a razão pela qual eu penso ser importante o envolvimen­to de pessoas com diferentes escolas de vida, diferentes sexos, diferentes condições económicas. Um dos projetos em que trabalho agora chama-se Look Up e é sobre todos perceberem que pertencemo­s a este planeta, certo? Não quer dizer que não se possa viver no espaço [risos], e partilhamo­s todos o mesmo céu, mas temos de reconhecer quão forte é a nossa ligação à Terra. Fala de juntar diferentes pessoas, de diferentes raças, sexos, origens económica. Imagino que deve estar cansada de falar sobre ser a primeira negra astronauta, mas gostava de ouvir a sua opinião sobre Barack Obama, o primeiro presidente negro? Foi uma surpresa? Sim, é verdade que estou um pouco cansada disto dos primeiros afro-americanos [risos], por isso devemos continuar a falar da Look Up. Porque não se trata de ser o primeiro, mas sim do que fazer com o nosso lugar à mesa. Em agosto vamos querer pessoas a dizer o que pensam, dizem, fotografam, porque num dado momento, como mulher de cor, cientista, engenheira, dançarina, professora, o que aprendi é que partilhamo­s este planeta. Olhemos para cima. Deixe-me insistir em Obama. Sim, sei que estou a tentar ignorar Obama. Mas sim, foi um grande presidente. Conheci-o. Somos de Chicago. Mas não quero ouvi-la falar de Obama só por ser negro. Foi ou não um grande presidente, um homem virado para a ciência, por exemplo? Inspirador. O presidente Obama era incrível em termos da sua visão e do trabalho que fez. E continua a fazer. Mas há um momento em que temos de perceber que cada um de nós tem também um papel a desempenha­r. Temos de assumir as nossas responsabi­lidades como indivíduos. E o que aprendi ao longo dos anos foi que temos de envolver as pessoas. E foi essa a grande razão por que vim a Portugal, para falar do Look Up.

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