Foi Pessoa agente dos russos?
Já nos habituámos ao caso Trump, vamos tendo o caso Bruno e, como vimos com Arkady Babchenko, na semana passada, estamos prontos para tudo. Relembro o último porque é comum nos hospícios os casos varrerem-se-nos e os mais recentes partirem mais depressa da memória. Babchenko é o jornalista russo exilado na vizinha Kiev, capital da Ucrânia, onde foi assassinado a mando dos russos de Putin. O próprio morto até apareceu no dia seguinte, numa conferência de imprensa, a denunciar o assassínio e a mostrar imagens em que o seu assassino estava a ser preso. Ao lado de Arkady Babchenko, também falou um polícia da secreta ucraniana, explicando que o anúncio do assassínio e o desmentido – a fake news montada – eram necessários, o que foi confirmado pelo ex-cadáver. Os colegas chorosos deste rejubilaram, vimo-los em direto, em quadradinho mais pequeno na pantalha, onde este estranho mundo moderno nos entra em casa todos os dias... Ontem, a polícia ucraniana revelou uma lista de 47 nomes, jornalistas e ativistas, em Kiev, potenciais alvos dos russos. Depois da revelação, alguns dos visados (na lista, mas ainda não pelas pistolas russas) já vieram dizer que suspeitam do tal perigo. Resumindo, a questão é basicamente esta: dos russos espera-se tudo; então, o melhor é inventar mais do que tudo. E a minha crónica é para trazer um certa normalidade, e até tradição, a isto. O meu velho e querido jornal, o DN, noticiou, em 1930, o suicídio de Aleister Crowley na Boca do Inferno. Crowley era uma personalidade internacional, um mago que inspirou um romance a Somerset Maugham e é citado no Paris É Uma Festa, de Hemingway. Ele correspondia-se com Pessoa, por causa do interesse comum pela astrologia, veio a Portugal e acabou tragicamente naquele tumulto de água e rochas em Cascais. Pessoa, que se encontrara com Crowley, testemunhou na polícia e falou, então, para o nosso DN. Pois bem, pouco depois, há uma carta do poeta ao que viria a ser o seu biógrafo, João Gaspar Simões, sobre o triste acontecimento. Revela Fernando Pessoa, na sua carta:“Crowley, que depois de se suicidar foi para a Alemanha, escreveu-me há dias.” Aliás, Aleister Crowley só viria a morrer em 1947, uma dúzia de anos depois de Pessoa. Isto para vos dizer que já conhecemos a modernidade há muito e não precisamos do perigo de Putin à porta para ter imaginação.