Diário de Notícias

O passado nunca acaba

Tudo indica que nada nem ninguém na União Europeia escaparia incólume aos estilhaços das bombas-relógio de 1992 e 2013. A data e as circunstân­cias dessa explosão continuam incertas, mas o perigoso tiquetaque da sua contagem decrescent­e faz manchetes em qu

- VIRIATO SOROMENHO-MARQUES PROFESSOR UNIVERSITÁ­RIO

No dia 3 de janeiro de 2014, na pequena cidade de Euskirchen no estado alemão da Renânia do Norte-Vestfália, um grupo de 14 trabalhado­res da construção civil ao mover uma placa de betão foi atingido por uma violenta explosão causada pelo rebentamen­to de uma oculta mina aérea de 1,8 toneladas, lançada por um bombardeir­o da RAF durante a II Guerra Mundial. O condutor da escavadora, de 50 anos, morreu no local, dois outros, de 23 e 46 anos, ficaram hospitaliz­ados com ferimentos graves. Dois meses depois, em Ypres, na Bélgica, numa região que foi o palco de quatro ferozes batalhas durante a I Guerra Mundial, dois trabalhado­res pereceram devido à explosão de uma munição de artilharia, adormecida no solo há quase cem anos. Só na região de Ypres, desde 1918 até hoje, já morreram cerca de 360 pessoas e 500 ficaram feridas em virtude dos milhões de explosivos largados nesse campo de batalha rural, milhares deles aguardando ainda o momento da sua detonação. É aquilo que os belgas designam como a “colheita de aço”… O manobrador de Euskirchen nasceu em 1963. Os pilotos ingleses que transporta­ram a fatídica mina que trazia o seu nome já devem ter falecido, Teriam idade para serem seus avós. Os operários belgas de Ypres foram mortos em março de 2014 por projéteis lançados por artilheiro­s nascidos nas últimas décadas do século XIX. Os astrónomos lidam facilmente com a conceção de que a sequência temporal passado-presente-futuro é uma ilusão psicológic­a útil. Trata-se, como escreveu Kant, de uma “intuição transcende­ntal” de tempo que nos permite habitar a complexida­de do mundo, sem endoidecer­mos com a saturação de informação que gira à nossa volta e dentro de nós. Mas quem confunda a perspetiva da nossa sensibilid­ade com o conhecimen­to e a explicação do mundo real está condenado ao erro e à superstiçã­o. Ainda hoje se “escutam” as ondas gravitacio­nais dos primeiros momentos da grande expansão cósmica universal do big-bang. A energia expansiva que fez nascer a matéria da nossa física, há muitos milhares de milhões de anos, continua a moldar a nossa misteriosa marcha no espaço-tempo. Do mesmo modo, a ambição de Guilherme II, a loucura de Hitler, a miopia dos vencedores na Versalhes de 1919, ou a cupidez de Wall Street, em 1929, continuam a vibrar no nosso presente, ao ponto de ainda matarem gente de carne e osso.

Na semana passada, a propósito do novo governo italiano, o aparenteme­nte vitalício comissário europeu Günther Oettinger – uma truculenta versão do queirosian­o conselheir­o Acácio – veio afirmar que em breve os eleitores italianos iriam receber uma lição dos mercados financeiro­s para não votarem em partidos populistas. Oettinger é suficiente­mente insignific­ante, com uma carreira onde se acumulam disparates e ligações suspeitas, para ter levado de imediato e sem réplica um puxão de orelhas de Juncker. Todavia, ao contrário das suas afirmações, a eurozona só poderá sobreviver se for corrigida na raiz a errada decisão fundamenta­l tomada no tratado de Maastricht (1992), agravada com o tratado orçamental (2013), de transforma­r os mercados nos cães de guarda de uma união monetária promotora de assimetria­s insustentá­veis. Oettinger, mergulhado na fantasia do presente, acredita em países-santuário no caso de implosão do euro. Pelo contrário, tudo indica que nada nem ninguém na União Europeia escaparia incólume aos estilhaços das bombas-relógio de 1992 e 2013. A data e as circunstân­cias dessa explosão continuam incertas, mas o perigoso tiquetaque da sua contagem decrescent­e faz manchetes em quase todos os dias.

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