Diário de Notícias

Álvaro Domingues: “A lei diz que há uma divisão nítida entre rural e urbano. É tontice”

- ANA SOUSA DIAS

Volta a Portugal mostra o país como ele é e não como o idealizamo­s ou como nos tentaram ensinar e impingir. O geógrafo, investigad­or e fotógrafo parece sempre espantado com o que vê e vai procurar saber porquê. Na terceira edição em poucos meses, vem com as badanas cheias de elogios, de Tolentino de Mendonça a Capicua e Miguel Esteves Cardoso. É mais um livro do menino Alvarinho, o tal que fazia coleção de selos em Melgaço, na mercearia dos pais, que lia e escrevia as cartas de e para os emigrados. “Ora agora torne a pôr.” Esta é uma Volta que percorre o país com um olhar irónico, terno, preocupado. Qual seria a palavra certa? Gostei especialme­nte da do meio. É uma mistura de curiosidad­e e ternura. A não compreensã­o do que se passa leva à chacota, diz-se que é caótico ou incompreen­sível. Os discursos e as representa­ções sobre Portugal e a chamada portugalid­ade são simplifica­dos, genéricos e não dão conta da transforma­ção da sociedade e do território. O famoso livro de Orlando Ribeiro, Portugal , o Mediterrân­eo e o Atlântico, fala desses contrastes. Estamos numa zona de transição climática, por aqui passaram berberes, vikings, celtas, romanos, tutti quanti. Os daqui foram para todo o lado, como as más raparigas. Foram desde o século XVI para a África, para as Índias, para o Brasil. E alguns voltaram? Muito poucos. Os que voltaram produziram mitologias fortes que a alta intelectua­lidade crucificav­a, e depois da II Guerra Mundial foi a debandada geral. Há um território diverso e uma população instável. Há menos de seis anos emigravam cem mil por ano. Falou de uma identidade. É o quê? Vivo mal com essa palavra. A conversa sobre a identidade vem do século XIX. O estado-nação tinha de ter identidade, território, língua, moeda, narrativa histórica, heróis, mitologias. Foi preciso a antropolog­ia instituir-se como ciência para dizer que isso da raça não tinha o mínimo de fundamento. Pegaram no Darwin, que estuda a evolução das espécies, aplicaram aos humanos e disseram que há raças, sobretudo, para provar que havia raças superiores e raças inferiores, que os negros tinham nascido escravos, vá-se lá saber, por imposição divina. E histórias muito tenebrosas como o Hitler. Ele usava expressões do darwinismo, como a ideia de espaço vital. A raça superior tinha de ter um espaço vital e as outras tinham de ceder. Israel está um bocado assim. Eu acho que o SNI, o Serviço Nacional de Informação, e a “política do espírito” do António Ferro pegam em todos os ingredient­es da construção romântica do estado-nação e transforma­m isso numa propaganda tóxica para vender para o exterior e para o interior. “São pobres mas felizes, andam descalcinh­os mas cantam e respeitam a autoridade e Deus.” Em qualquer parte do mundo encontramo­s um português. Somos agentes da globalizaç­ão desde a primeira hora. O José Mattoso, quando explica os primeiros tempos da fundação e da primeira dinastia, dá uma ideia de um cruzamento incrível de gente, desde logo porque Afonso, para conquistar Lisboa, teve de distribuir terras para gente que vinha lá da Inglaterra e do norte para as cruzadas. Há sempre mistura. Quando se inventa mitologias da portugalid­ade é o contrário, é fixar a linhagem pura, não misturada. Tem um olhar irónico, terno e preocupado. A preocupaçã­o esta lá? Nós somos do mundo, vivemos na globalizaç­ão. Apesar da diluição da ideia de estado-nação, apesar de não controlarm­os os processos sociais, preocupamo-nos connosco. Quando dizemos nós, o que convocamos? O que acha? O que me preocupa é… não sei, gostava de que as coisas corressem melhor. Nos últimos 40 anos o país fez um caminho impression­ante de progresso mas aumentaram os contrastes. Dois terços do país desligam do sistema. É possível intervir ? É sempre possível intervir, mas Portugal tem uma longa tradição, desde o primeiro rei, de concentraç­ão do poder. À enésima discussão sobre regionaliz­ação aparecem temas e fantasmas e morre logo a seguir. É um estado centralist­a e burocratiz­ado, que vê de cima para baixo de forma abstrata, e a legislação é genérica para o país todo. Eu venho das questões do urbanismo e do planeament­o e em determinad­a altura deixei de praticar porque aquilo não tinha pés nem cabeça. Tem a ilusão de olhar para as coisas “clara e racionalme­nte”, mas elas não são assim. Bastava olhar para a legenda do plano e para a maneira como classifica­va. A lei ainda diz que há uma divisão nítida entre o rural e o urbano. Isso é uma tontice. Não há? Um dos problemas sérios das ciências sociais é que os conceitos não evoluíram à velocidade que as coisas mudaram. A cidade deu lugar à urbanizaçã­o e a urbanizaçã­o é um processo. Desde o século XIX entrámos em modo acelerado em matéria tecnológic­a e são cada vez mais os sistemas técnicos que vencem distâncias e encurtam tempos. Dou-me conta disto quando pergunto “onde é que tu moras?” e a pessoa responde “a não sei quantos minutos do nó de”, não importa onde. Fazemos uma pergunta em espaço e respondem-nos em tempo. Venha o Einstein para nos dizer da relativida­de, da relação tempo-espaço e da forma como estas megaprótes­es tecnológic­as distorcem. A autoestrad­a comprime o espaço e acelera o tempo, e produz uma espacialid­ade, uma geografia completame­nte distinta. Eu vejo pela minha experiênci­a de miúdo e da juventude. Em Melgaço? Fui o único da minha escola que não emigrou. É por isso que eu não tenho amigos da escola. Fiz uma página no Facebook por causa do livro e encontrei gente em todo o mundo. Tive um tio em Vancouver. Um dos meus vizinhos trabalhava na Nova Caledónia, encostada à Austrália. Os meus pais tinham uma mercearia e eu fazia coleção de selos. A maior parte das pessoas não sabia ler nem escrever e o Alvarinho lia a escrevia. Ainda me lembro de uma senhora a quem a minha mãe chamava a “Torne a pôr”. Dizia “Ó Alvarinho ora escreva: isto e aquilo e aqueloutro, vê se mandas.” Aquelas coisas dos dinheiros, da família. “Ora leia.” E eu: vê se mandas isto e aquilo e aqueloutro. “Pronto, já pôs, torne a pôr.” E eu perguntava, mas torno a pôr porquê? “Ele não ouve, é muito teimoso, é preciso dizer-lhe as coisas não sei quantas vezes.” Na taberna, assisti a discussões do género: “Como é a segurança social em França e como é nos Estados Unidos?” O português nem sequer tinha palavras para as coisas que eram ditas. O dizer-se vacanças e não férias – a féria era o que se ganhava num dia de trabalho – e para encontrar uma palavra ajustada dizia-se vacanças. Lembro-me da cara estupefact­a de um: “Estás a dizer que te pagam para não trabalhar?” Anda pelo país a deambular ou tem objetivos determinad­os? Às vezes vou com objetivos determinad­os. Fui à Amareleja fotografar a central fotovoltai­ca. Tinha visto uma imagem fabulosa de um rebanho a entrar por uma cidade eletrónica, porque são eles que fazem a manutenção da erva, não a deixam crescer. Fui ver as papoilas do ópio, no Perímetro de Rega do Alqueva. Duas farmacêuti­cas estão a testar no Alentejo a produção de papoila para produzir medicament­os. Vi um drone a monitoriza­r um olival. No livro fala de camelos que transporta­vam produção de loiça da Vista Alegre. Isto foi quando? Foi nos finais do século XIX. A loiça ia em carros puxados por animais. Eram coisas muito frágeis e iam para o Porto para serem exportadas. Por muito cuidado que houvesse em embalá-la, partia-se. O comboio ainda era pior. Um gestor da Vista Alegre, um senhor viajado, percebia a suavidade do camelo no transporte. Comprou uma cáfila de camelos em Marrocos e trouxe também os especialis­tas, porque em relação a psicologia dos camelos não pescávamos nada. Havia histórias engraçadís­simas pelo meio, e uma delas era o pessoal que estava na missa quando vinham os camelos e saía tudo. O padre ficava muito chateado porque o sagrado tinha sido preterido para o espetáculo do camelo.

“Eu fui o único da minha escola que não emigrou. É por isso que não tenho amigos da escola” “O português nem tinha palavras para coisas que eram ditas. Dizia-se vacanças e não férias, para encontrar uma palavra ajustada” “Um gestor da Vista Alegre comprou uma cáfila de camelos e trouxe os especialis­tas, porque em relação a psicologia dos camelos não pescávamos nada”

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