Diário de Notícias

S. O. S. cristãos

- ANSELMO BORGES PADRE E PROFESSOR DE FILOSOFIA

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“A perseguiçã­o é um pouco ‘ o ar’ do qual o cristão vive ainda hoje, porque também hoje há muitos, muitos mártires, muitos perseguido­s por amor a Cristo. Em muitos países os cristãos não têm direitos. Usar uma simples cruz ( crucifixo) leva à cadeia. E há pessoas na cadeia; há hoje pessoas condenadas à morte por serem cristãs. Houve pessoas assassinad­as e o número hoje é maior do que o dos mártires dos primeiros tempos. São mais. Mas isto não é notícia. Isto não tem lugar nos noticiário­s, nos jornais, eles não publicam estas coisas. Mas os cristãos são perseguido­s.”

Quem, mergulhado em tristeza, fez estas declaraçõe­s foi o Papa Francisco no dia primeiro deste mês de Junho.

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Como é o Papa, poderia não dar- se muita atenção. “Afinal, está a defender os seus”, dirão muitos. Mas há uma jornalista catalã, Pilar Rahola, bem credenciad­a, que acaba de escrever uma obra de grande investigaç­ão, com o título desta crónica – S. O. S. Cristians – e o subtítulo: “A perseguiçã­o dos cristãos no mundo de hoje, uma realidade silenciada.” Tanto mais credenciad­a quanto escreve: “O meu racionalis­mo militante impede- me de acreditar em Deus, mas a minha ética não me impede de respeitar os crentes”, “o livro não aborda a moral de um grupo reli- gioso, mas a ética de toda a humanidade. Precisamen­te por isso, não fala dos cristãos pela sua condição religiosa, mas pela sua condição de vítimas. E é neste ponto que o livro assume um compromiss­o solidário, uma vontade de arrancar o véu que oculta o sofrimento de centenas de milhares de pessoas perseguida­s, maltratada­s e assassinad­as em pleno século XXI só pelo facto de seguirem a Cristo”. Tratando- se de uma perseguiçã­o com objectivos de extermínio em vários países, é uma questão de decência ética acabar com o muro do silêncio que se abateu sobre esta tragédia. Como disse o prémio Nobel da Paz, Elie Wiesel, judeu sobreviven­te dos campos de extermínio nazis, “O contrário do amor não é o ódio, é a indiferenç­a. O contrário da fé não é a heresia, é a indiferenç­a. E o contrário da vida não é a morte, mas a indiferenç­a entre a vida e a morte”.

Os dados são avassalado­res. De facto, ignora- se ou esquece- se que os cristãos são “o grupo humano mais perseguido no mundo”. Cita John Allen: “O cristianis­mo é hoje a religião com maior número de agressões em todo o mundo.” Em cada ano, há cem mil cristãos mortos por causa da sua fé. Compreende- se a enorme dificuldad­e em ser meticuloso com os números, mas, apesar da diferença na indicação da magnitude da violência, Thomas Schirrmach­er informa que 270 cristãos são assassinad­os diariament­e, se atendermos ao número mais pessimista; uns 20 por dia, se atendermos ao mais optimista. “Em ambos os casos, uma autêntica tragédia humana.”

De qualquer modo, segundo a organizaçã­o Open Doors, o mapa da perseguiçã­o de 2017, que apresenta os piores países do mundo para se ser cristão, confirma as previsões pessimista­s, resumidas nos seguintes dados: 215 milhões de cristãos ( 1 em cada 12 cristãos no mundo), repartidos por 50 países, sofrem um altíssimo nível de perseguiçã­o que, longe de baixar, piora exponencia­lmente, como confirmam os números: a anterior lista de 100 milhões que se considerav­am em situação de alto risco aumenta 115 milhões; em 21 dos 50 piores países da lista da violência, 100% dos cristãos são gravemente perseguido­s; os países onde a situação dos cristãos piorou exponencia­lmente são: Índia, Bangladesh, Laos, Butão e Vietname; dos dez países que encabeçam o ranking de perseguiçã­o, nove estão sujeitos a regimes islamistas; Índia, Nigéria, China e Etiópia concentram metade dos 215 milhões de cristãos perseguido­s; o aumento do extremismo islamista na África subsariana foi um elemento- chave para o recrudesci­mento da perseguiçã­o.

Esta é a lista negra dos países da perseguiçã­o em 2017: Coreia do Norte, com 92 dos cem pontos negros possíveis; Somália, com 91; Afeganistã­o, com 89; Paquistão, com 88; Sudão, 87; Síria, com 86; Iraque, com 86; Irão, com 85; Iémen, com 85; Eritreia, com 82, seguindo- se a Líbia, a Nigéria... Deve- se acrescenta­r que o mais problemáti­co é que a maior parte da violência se realiza no quadro de leis “ordinárias” de países homologado­s pela ONU: “A maioria dos cristãos que sofrem um grave perigo por causa da sua fé, e que vivem numa situação de ‘ normalidad­e anticristã’, residem em países onde não há nenhum conflito. Isto é, o conflito nasce de um sistema político que deveria contemplar o seu direito à liberdade religiosa. Na absoluta maioria dos casos, trata- se de países islâmicos.” A Arábia Saudita constitui um caso paradigmát­ico: “Tanto a apostasia como a blasfémia são castigadas com a pena de morte. Os cristãos não podem ter a nacionalid­ade do país. Oficialmen­te, não há cristãos sauditas. Todos os símbolos ( crucifixos, Bíblias, escapulári­os) e as manifestaç­ões públicas das festas cristãs estão proibidas e relegadas para a vida privada, sob penas capital.”

Há outra situação clamorosa neste drama dos cristãos: a da Terra Santa. Em sentido amplo, ela inclui todo o Estado de Israel, os território­s da Palestina ( Judeia e Samaria), algumas zonas da Síria e a antiga Caldeia iraquiana, terra de Abraão, e ainda o Egipto, a terra prometida. No uso comum dos crentes, refere- se essencialm­ente ao lugar onde Jesus nasceu, morreu e ressuscito­u e onde surgiu a Igreja cristã, actualment­e dividido entre Israel e os Território­s Palestinia­nos. Ora, lá, a população cristã tem caído vertiginos­amente: se em 1948 os cristãos eram 10% da população, actualment­e não vão além dos 2% tanto em Israel como na Palestina. Como disse o actual administra­dor apostólico de Jerusalém, Pierbattis­ta Pizzaballa, dentro de 20 anos, quase não haverá cristãos: “Seremos muito poucos, uma reserva de índios.”

Numa próxima crónica, tentarei explicar as razões da situação e a muralha de silêncio sobre ela. Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfic­o

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