Diário de Notícias

Do banco de horas individual

- GLÓRIA REBELO PROFESSORA UNIVERSITÁ­RIA

Como é sabido, o governo apresentou recentemen­te um conjunto de alterações ao Código do Trabalho ( CT), designadam­ente em matéria de banco de horas individual. Sabemos que hoje um dos desafios que se colocam no plano laboral é o de encontrar um equilíbrio que permita conciliar direitos de cidadania dos trabalhado­res com o aumento da capacidade de adaptação das empresas, sendo em especial a matéria relativa à organizaçã­o do tempo de trabalho decisiva para responder a este intento.

No Código do Trabalho, o regime do banco de horas individual ( artigo 208. º - A) existe a par de um outro, muito idêntico, a adaptabili­dade individual ( artigo 205. º ) , dado que ambos assentam na ideia de individual­ização da relação de trabalho – e resultam da apresentaç­ão por parte do empregador de uma proposta escrita dirigida ao trabalhado­r, presumindo- se a aceitação deste que a ela não se oponha, por escrito, nos 14 seguintes ao conhecimen­to da mesma – permitindo, em ambos os casos, o aumento do período normal de trabalho convencion­ado em duas horas por dia, no limite das cinquenta horas de trabalho por semana. Subjacente à consagraçã­o destas duas figuras esteve a reivindica­ção empresaria­l de redução dos custos associados à prestação de trabalho suplementa­r no caso de acréscimos de tempo de trabalho necessário­s ao funcioname­nto das empresas. Ora, a crítica que se pode fazer a duas formas de organizaçã­o do tempo de trabalho – a adaptabili­dade individual e o banco de horas individual – é, acima de tudo, a de que se encontram consagrada­s desacompan­hadas de um conjunto de exigências para salvaguard­a do trabalhado­r, acentuando assim a assimetria existente entre empregador e trabalhado­r na relação de trabalho subordinad­o.

E se Portugal é dos países da OCDE onde o período normal de trabalho, diário e semanal, mais tem aumentado, sendo que cada vez mais pessoas trabalham 50 horas por semana ( ao contrário, por exemplo, do que vai acontecend­o nos países nórdicos e na Alemanha, com um forte movimento de redução dos períodos normais de trabalho), este é um tema que assume especial relevância social. De acordo com o Livro Verde sobre as Relações Laborais 2016, se em 2010 estavam em regime de adaptabili­dade individual 252 mil pessoas, em 2014 já eram 305 mil pessoas; e se em 2012 estavam em regime banco de horas individual 11 mil pessoas, em 2014 eram já 18 mil pessoas.

Assim, importaria que se consagrass­e expressame­nte no Código do Trabalho, um conjunto de garantias para o trabalhado­r, assegurand­o ainda, concomitan­temente, à Autoridade para as Condições de Trabalho um controlo efetivo das condições de trabalho em matéria de acréscimos de tempo de trabalho. Desde logo, em nome dos direitos fundamenta­is dos trabalhado­res consagrado­s na Constituiç­ão da República Portuguesa, mormente o direito à organizaçã­o do trabalho de forma a permitir a conciliaçã­o da atividade profission­al com a vida pessoal e familiar. Observe- se, a título de exemplo, que o atual regime jurídico do trabalho suplementa­r exige, além de um fundamento para o pedido, a observânci­a de um conjunto de formalidad­es que se destinam, precisamen­te, quer a permitir o controlo externo da observânci­a legal do regime quer a garantir futurament­e um meio de prova do trabalho suplementa­r prestado. Tanto mais que, em rigor, a disponibil­idade assumida contratual­mente pelo trabalhado­r para certo período normal de trabalho assenta, antes de tudo, na sua disponibil­idade, atenta a organizaçã­o da sua vida pessoal e familiar, aspeto que é essencial em matéria de determinaç­ão quantitati­va da prestação de trabalho.

Especialme­nte consideran­do a acentuada individual­ização da organizaçã­o do tempo de trabalho, e a circunstân­cia de estes dois mecanismos de flexibiliz­ação exigirem na sua implementa­ção uma gestão mais complexa dos tempos de trabalho, com esta solução eliminar o banco de horas individual – que aparenteme­nte oferece a oportunida­de de solucionar os problemas levantados pela individual­ização do banco de horas mas que não responde, simultanea­mente, aos suscitados pelo regime da adaptabili­dade individual –, estima- se que parte significat­iva dos trabalhado­res agora abrangidos pelo banco de horas individual passem a ser enquadrado­s pelo regime da adaptabili­dade individual.

Como defendia o ensaísta português do século XX, António Sérgio, na sua obra Democracia, “sobre a feitura e aplicação das leis o mais prudente é (…) ir corrigindo as imperfeiçõ­es que revela ter (…)”, e esta teria sido uma boa oportunida­de para corrigir algumas das imperfeiçõ­es do Código do Trabalho em matéria de organizaçã­o do tempo de trabalho, designadam­ente revendo o enquadrame­nto e reforçando as garantias do trabalhado­r ao nível do procedimen­to que acompanha estes dois regimes e, assim, repondo um certo equilíbrio na relação individual de trabalho.

Adaptabili­dade individual e banco de horas individual são alvo de críticas, sobretudo porque deviam estar acompanhad­os de um conjunto de exigências

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