Diário de Notícias

Alfredo Jaar “O meu estúdio era apocalípti­co, mas a minha casa era um lugar seguro”

-

Alfredo Jaar, chileno radicado há décadas em Nova Iorque, define-se como um arquiteto que faz arte. Encontramo-lo antes da conferênci­a que deu ontem no MAAT e falamos do significad­o da sua obra mais conhecida, onde se lê This Is not America na era Trump, e da cerimónia fúnebre que

fez aos imigrantes que morreram a atravessar a fronteira para os EUA Por Mariana Pereira

AA sua obra é testemunha do mundo que Alfredo Jaar não se cansa de ler “nas entrelinha­s”, sempre. Seja com as silhuetas das vítimas de Pinochet no Chile, de onde é natural, com o extenso trabalho em torno do genocídio no Ruanda, com a repetição da cara da pequena Nguyen Thi Thuy, para contar como os refugiados vietnamita­s eram tratados nas prisões de Hong Kong ou, mais recentemen­te, com o Jardim do Bem e do Mal, instalado no parque de esculturas de Yorkshire, Inglaterra, uma pista material das prisões secretas da CIA pelo mundo inteiro. Como avalia a forma como as pessoas reagem ao seu trabalho? Aprendi muito com a reação das pessoas. Quando tenho uma exposição gosto de passar tempo lá, observo as pessoas, a sua linguagem corporal, as suas reações, falo com as pessoas. É assim que aprendo, é a única forma. Muitas vezes passa incógnito, porque não tenho uma imagem pública; às vezes falo com as pessoas e elas nem sabem que sou o artista. Lembra-se de algum episódio em particular? Muitos dos meus trabalhos fazem as pessoas chorar, reagir de formas muito específica­s, para mim todas estas coisas são sinais de que a obra tem um efeito, é o que estou a tentar fazer. Ao mesmo tempo as suas obras são muito subtis. Aprendeu isso ou teve-o sempre presente, não expor demasiado? Interesso-me por poesia. Para mim arte é um equilíbrio perfeito entre informação e poesia. Sempre tentei encontrar esse equilíbrio, e é muito difícil. Na maior parte das vezes a obra falha. Quando tem demasiada informação torna-se muito didática. Outras vezes torna-se demasiado poética, demasiado bonita, obscura, misteriosa. Para mim a obra sublime, perfeita, é a que atinge esse equilíbrio perfeito: informa-nos, comove-nos, ilumina-nos. O que é ser demasiado bonita? Significa que o conteúdo desaparece­u. É tão bonita que a beleza dissipa o possível conteúdo da obra. Não acho que isso seja bom. Ao longo dos anos, tem se aproximado desse equilíbrio? Algumas obras estão mais próximas do que outras. Cada uma das minhas obras é um exercício de comunicaçã­o, não é uma obra-prima.

Aprendo com ele e tiro as minhas lições: isto funciona, isto falhou, isto falhou miseravelm­ente. A minha carreira tem sido assim, uma sucessão de exercícios, a maior parte fracassado­s. Como identifica as falhas? São técnicas ou sempre concetuais? É sempre um problema concetual. Acontece na maior parte das vezes porque, quando fazemos uma obra e a pomos no espaço público, perdemos o controlo. Eu e os meus assistente­s fazemos sempre um exercício quando estamos prestes a mostrar uma obra. Sentamo-nos todos juntos e pensamos: qual é a pior coisa que poderia acontecer? Tentamos imaginar coisas, e às vezes falhamos. Acontecem coisas que nunca pensámos que pudessem acontecer, porque essa é a lógica do espaço público: nunca sabemos o que pode acontecer. Estou a pensar em A Logo For America com a frase “This is not America”. As pessoas relacionam-se com ela de forma muito diferente. E agora com a administra­ção Trump... A obra foi feita em 1987 e era um projeto puramente linguístic­o que questionav­a o facto de os americanos dizerem: Welcome to America e God bless America, e não estavam a falar da América, estavam a falar dos Estados Unidos. Estavam a apagar o resto do continente do mapa. [A Logo for America] Foi mostrada num único ecrã em 1987 em Times Square. Em 2014 foi comprada pelo museu Guggenheim e eles decidiram pô-lo outra vez em Times Square. As reações foram radicalmen­te diferentes. Naquela altura, Obama estava a expulsar imigrantes. As pessoas viram-no como uma crítica e depois tem sido mostrado uma e outra vez no México, em Bogotá, Londres, Vancouver. Agora estamos com o Trump, que dá uma ideia dos EUA que a maioria dos americanos rejeita. Então veem aquilo e dizem: Yes! This is not America. Nunca poderia sonhar que o significad­o mudaria e que se tornaria a minha obra mais importante. É? Sim, é a mais reproduzid­a. É usada em mais de 30 livros escolares, para ensinar crianças o que é a América. E claro que é a minha obra mais reproduzid­a na América Latina. Como foi a performanc­e The Cloud na fronteira com o México, entre Tijuana e San Diego? Foi muito comovente. Cerca de 3000 morrem a cada dez anos, apenas por tentarem passar a fronteira. A situação não era [em 2000] tão dramática como é hoje. Hoje estão a separar bebés e crianças das suas mães, é criminosa a forma como estão a tratar os imigrantes agora. Mas na altura as pessoas estavam a afogar-se no rio ou a ser mortas por carros. Porque na Califórnia a vedação foi construída junto a uma estrada, e não há semáforos, não há nada, de propósito. Estas mortes nem sequer apareciam nos jornais. Eu queria criar um lugar onde as pessoas pudessem vir fazer o luto dos seus entes queridos. Trabalhei com sete organizaçõ­es não-governamen­tais e convidámos as famílias das vítimas. Apareceram cerca de 1200 pessoas, tocaram música clássica, fizemos uma homenagem às suas vidas, perdidas. No final, libertámos “a nuvem”, os balões, e foi bonito porque eles deveriam ter ido para o mar, mas o vento mudou, e eles foram na direção do México. Então, de certo modo, todos estes imigrantes que morreram voltaram a casa. Foi muito comovente, muito catártico. As pessoas sabiam que por detrás daquilo estava um artista? Sim. Falei com muitos deles, convidei-os, recebi-os quando chegaram. Nunca pensaram que esta cerimónia bonita, com muitas conotações religiosas, também era uma obra de arte. Como geriu a relação entre o peso dos assuntos que trabalha e a família? Não foi fácil, mas nunca levei estas realidades para casa. O meu estúdio era apocalípti­co, mas a minha casa era um lugar seguro, um lugar de conhecimen­to, com os livros, a música. O meu filho [Nicholas Jaar] nasceu numa casa musical.

“Queria criar um lugar onde as pessoas pudessem vir fazer o luto dos seus entes queridos mortos a passar a fronteira para os EUA” “Para mim a obra sublime é a que atinge esse equilíbrio perfeito: informa-nos, comove-nos, ilumina-nos”

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal