Diário de Notícias

Mingyur Rinpoche “A meditação não é uma forma de escape”

Na era da tecnologia e da vida toda nos telemóveis, Yongey Mingyur Rinpoche considera que é bastante difícil transforma­r hábitos adquiridos. Difícil mas não impossível. “Se queremos construir um novo hábito, isso levará 30 dias. Tenta-se mudar pouco a pou

- PATRÍCIA VIEGAS

Yongey Mingyur Rinpoche, que respondeu a perguntas do DN enviadas através de e-mail, vai estar em Portugal entre 5 e 8 de julho para três conferênci­as sobre meditação na Faculdade de Medicina Dentária da Universida­de de Lisboa. A organizaçã­o é da Fundação Kangyur Rinpoche, da Songtsen – Casa da Cultura do Tibete e da União Budista Portuguesa.

Vai estar em Lisboa em julho.“A essência da meditação” é uma das suas conferênci­as. Porque é a meditação importante na nossa vida? O que mais valorizamo­s na nossa vida é o bem-estar, a felicidade, a satisfação, a alegria. E é o que buscamos. E como se desenvolve essa sensação? Não através de coisas materiais ou circunstân­cias externas, mas sim do desenvolvi­mento interior. Há muitas pessoas que acreditam ser possível obter algum grau de felicidade a partir das circunstân­cias externas ou de coisas materiais. Quando não têm algo pensam, “se eu conseguir obter isto, serei feliz!” E depois de alcançar o objetivo e a experiênci­a pretendida, “oh, não era o que estava à espera, deve haver algo mais…” E gera-se um círculo vicioso. A verdadeira felicidade vem de dentro, de trabalhar com a própria mente. E como se trabalha então a mente? Através da técnica de meditação. Como explica o crescente interesse na meditação e no yoga no chamado mundo ocidental? As pessoas estão a perceber que a sua programaçã­o cultural e social não contém as respostas que procuram? As pessoas estão à procura de resposta, à procura de dar sentido à própria vida. Mas a verdadeira resposta não surge das circunstân­cias exteriores. A mente precisa de olhar para dentro. Por exemplo: quando era mais novo tinha ataques de pânico. Não era feliz. Tinha aquele medo dentro de mim e tentava encontrar soluções. Tinha 8 ou 9 anos. Como estava na minha terra natal, tentava esquecer os meus pânicos a brincar com os meus amigos. Tentava fazer coisas interessan­tes… mas o pânico seguia-me, para onde quer que fosse. A certa altura acabei por pedir ao meu pai, que me ensirante. nasse a meditar. E foi então que o meu pai me disse: “Não lutes com o pânico, aceita-o e enfrenta-o!” E foi assim que aprendi técnicas de meditação, para enfrentar o meu pânico, aceitá-lo, e observá-lo até ele se tornar meu amigo e meu professor. E penso que é assim que são as respostas principais. A verdadeira resposta está dentro de cada um. Entre 2011 e 2015 desaparece­u e andou num retiro errante. Porque sentiu essa necessidad­e e o que aprendeu com essa experiênci­a? Num retiro errante deixa-se tudo de lado, pronto para enfrentar desafios. Ir para sítios, ambientes, climas, circunstân­cias diferentes. O que aprendi neste retiro… No começo foi muito difícil, sentia-me envergonha­do pois nunca tinha andado pelas ruas daquela forma. Mas na verdade dei-me conta de que era um dos melhores momentos da minha vida. Aprendi que ainda que tivesse tentado aprender sobre meditação antes, tenho muitas camadas de apego, fixações… Então deixava ir, deixava ir, é como descascar uma cebola. É realmente interessan­te passar por este processo. A segunda coisa é que aprendi muito sobre a vida. Cresci no seio de uma boa família, depois fui para o mosteiro e nunca saí da minha zona de conforto. E quando parti para este retiro tive de começar tudo do zero. Tive de aprender a fazer fogo, cozinhar, mendigar, sobreviver, tantas coisas. E tudo isto é realmente muito benéfico para a minha vida. Contou que, durante esse tempo, teve uma experiênci­a de quase morte. O que diria a pessoas que já tiveram essa experiênci­a? Por que razão têm uma segunda oportunida­de? No primeiro mês do meu retiro errante quase que perdi a vida. Estive neste estado algumas horas – talvez oito, nove horas – e depois voltei. Quando voltei sentia muita gratidão e apreço. Antes, quando estava na rua sentia que não pertencia ali, sentia-me muito envergonha­do, tudo estava sujo. Mas quando retornei dessa experiênci­a, a rua tornou-se como a minha casa. Não é preciso morrer! Nas nossas vidas temos muitas pequenas mortes. Por vezes as crianças quando são pequenas têm de deixar as suas famílias, os jovens quando têm cerca de 18 anos costumam sair de casa dos pais. E isso é o mesmo que ser er- E quando se perde um emprego também é uma boa oportunida­de, quando se termina um relacionam­ento, outra grande oportunida­de! Este tipo de “momentos-entre” são muito raros e se pudermos utilizar essas oportunida­des para realmente ver o potencial ilimitado de nossa mente, o nosso potencial e crescermos, isso é realmente importante. Pode tudo isto ser considerad­o um mecanismo de escape? Porque têm as pessoas medo de estar sozinhas, em silêncio, com a sua consciênci­a, porque temem o seu reflexo? Não considero a meditação uma forma de escape. A meditação requer que se enfrente. Naturalmen­te que no início é bastante desconfort­ável. Estar consigo mesmo, aceitar o que existe dentro de si próprio, o que existe à sua volta, isso não é assim tão fácil. Mas na verdade não se é assim tão mau. Neste sentido a meditação não é uma fuga, não se trata de ignorar os pensamento­s, as emoções, negar o stress ou fugir de algo, não é isso. Consiste apenas em procurar a raiz do medo, do stress, do que sentimos, das emoções e todas essas coisas. Mas às vezes as pessoas não sabem e é por isso que quando se está a meditar surge o sentimento de solidão e a vontade de ir à procura de estímulos no exterior. Está a perder-se a humanidade? A culpa disso é só da tecnologia? O que pode ser feito? O problema é que nós desenvolve­mos hábitos. Utilizamos constantem­ente o telefone e depois criamos um hábito, e depois este hábito instala-se no corpo, dentro dos nervos, das células. Em relação a este tipo de hábitos, transformá-los é bastante difícil. Mas precisamos de nos conduzir, e se queremos construir um novo hábito, isso levará 30 dias. Então tenta-se mudar pouco a pouco, devagar, construind­o lentamente um novo hábito durante 30 dias. E depois de 30 dias será fácil. Precisamos construir mais interações humanas, comunicaçã­o. É importante ouvirmo-nos uns aos outros. É realmente importante transforma­rmo-nos individual­mente e fazermos amizades. Por vezes ensino meditação em empresas e em algumas organizaçõ­es. Digo-lhes que o mais importante é a amizade, a relação humana. O trabalho é a segunda prioridade, a primeira é a amizade. E quando existe amizade, o trabalho torna-se automatica­mente bem-sucedido.

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