Diário de Notícias

ANTHONY BOURDAIN 1956-2018

MORREU O ENFANT TERRIBLE DA ALTA COZINHA E DOS PROGRAMAS DE CULINÁRIA

- RICARDO SANTOS, Volta ao Mundo

Em 1972, ele era um adolescent­e de 16 anos que dividia uma casa de férias em Provinceto­wn (Massachuse­tts, EUA) com um grupo de amigos. Não tinha dinheiro para a renda e teve de trabalhar. Calhou-lhe lavar pratos num restaurant­e de portuguese­s numa cidade conhecida pela tolerância. Por lá andavam artistas em busca de musas, homossexua­is em luta pelo respeito, escritores com o bloqueio da página em branco. E Anthony Bourdain adaptou-se na perfeição.

Há 46 anos não lhe passava pela cabeça ser cozinheiro, muito menos naquele verão, à medida que os pratos sujos se acumulavam na copa. Não lhe faltavam drogas, álcool, sexo, noites mal dormidas e histórias para contar. E foi por esses dias que se rendeu ao caldo verde, a sopa de couve portuguesa, levada por açorianos para a América. Marcada na adolescênc­ia de Bourdain em Provinceto­wn também ficaram as sopas de lagosta e de peixe, cozinhadas com tempo pelos portuguese­s da zona. Foi com esta comunidade de pescadores, fundada em meados do século XIX, que aprendeu o prazer das longas horas à mesa, do sentar em frente ao prato e discutir a comida, respeitand­o-a.

Nos quase 30 anos que se seguiram, nunca mais tirou o avental. Primeiro para enfrentar a sujidade dos pratos e, aos poucos, para os compor com receitas de outros e também suas.

Em 2000, pediram-lhe para escrever um artigo sobre o mundo da cozinha. Duas semanas depois de entregar o material acenaram-lhe com o contrato para um livro. E surgiu Kitchen Confidenti­al, uma viagem de desmistifi­cação do universo dos cozinheiro­s e das cozinhas de alguns dos melhores restaurant­es de Nova Iorque. Não parou mais. Vieram os programas No Reservatio­ns (2005) e a sua visão do mundo através da comida. A revolução estava a dar na televisão, mostrando como se pode contar a história do Camboja através de uma sopa, como o sushi é muito mais do que um rolo de arroz com peixe cru ou como a carne da barriga do porco – nas suas palavras e atos – é, provavelme­nte, o melhor petisco do mundo.Vimo-lo a beber ginjinhas umas atrás das outras no Rossio, a fantasiar com tacos de peixe às tantas da manhã numa rulote mexicana, a jantar com Barack Obama numa tasca vietnamita, de pazes feitas com a história.

No ano passado, numa entrevista à revista The New Yorker, Anthony Bourdain ajudou a desmontar a ideia de vida perfeita que sempre se associa a quem trabalha no mundo das viagens. Começava por perguntar “o que é que fazemos depois de realizar os nossos sonhos?”. E explicava a sua rotina: “Mudo de lugar a cada duas semanas. (…) Não sou cozinheiro nem jornalista. Aquele tipo de carinho e de alimentar da relação que se deve aos amigos, não sou capaz. Não estou lá, não me vou lembrar do aniversári­o, não vou lá estar para os momentos importante­s. (…) Nos últimos 15 anos ou coisa assim, estive a viajar 200 dias por ano. Faço bons amigos uma semana de cada vez.”

“Ainda estou meio abananado”, escrevo no chat para o Hugo, o amigo que me deu a notícia da morte de Anthony Bourdain. Foi com ele que corri as capelinhas de Lisboa em busca do chef e escritor norte-americano, que andava pela capital portuguesa a filmar para o programa No Reservatio­ns. Era dezembro de 2011 e montámos guarda ao 100 Maneiras, à Tasca do Chico e ao Ramiro. O episódio acabaria por se estrear na televisão portuguesa em janeiro de 2013 e criticado – bem e mal – pelos entendidos nas matérias de audiovisua­l, gastronomi­a e lifestyle. Para mim, como todos os outros episódios, foi um tiro certeiro naquilo que é o destino, naquele caso Lisboa: delicioso, intrigante, eterno e do mundo. Tal qual Bourdain.

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Em 2012, Anthony Bourdain mostrou uma Lisboa sombria com José Avillez e Lobo Antunes no seu programa No Reservatio­ns. Em cima, o chef durante as filmagens na capital portuguesa. O americano esteve em 2009 nos Açores e em 2017 regressou ao Porto, que visitara 15 anos antes

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