Diário de Notícias

Constantin­o Sakellarid­es

“O SNS não suporta mais 15 anos de retrocesso e estagnação”

- ANA MAFALDA INÁCIO

Aos 77 anos e já na reforma, continua a ir todas as semanas à Escola Nacional de Saúde Pública. Foi ali que ensinou, que foi presidente e é ali que tem o seu gabinete... apesar de todos os cargos na política de saúde, será sempre professor catedrátic­o jubilado

Há dois anos foi escolhido pelo ministro da Saúde para liderar um projeto de reforma de cuidados – SNS+Proximidad­e. Em abril apresentou a carta de demissão e na semana passada foi ao Parlamento explicar aos deputados as razões. Disse-lhes que todos os requisitos essenciais à transforma­ção do SNS não estavam reunidos. Por isso, “era preferível continuar a trabalhar na mesma agenda mas fora do ministério”. Numa altura em que se vai discutir uma nova Lei de Bases da Saúde, em que profission­ais continuam a abandonar o SNS, critica a ausência de uma governação moderna na saúde e diz haver uma razão para os políticos se sentirem incomodado­s com uma nova lei de bases: vão ter de escolher o SNS que querem. O que se ganhou e perdeu no Serviço Nacional de Saúde nos últimos 25 anos? Há 40 anos, quando meia dúzia de teimosos insistiram que Portugal deveria ter um Serviço Nacional de Saúde (SNS), nunca se pensou que teríamos um como o que temos hoje. Mesmo com todas as limitações, é a melhor coisa que a democracia nos deu. O que é que perdemos? Três coisas: o SNS é uma ideia generosa baseada nas necessidad­es das pessoas, mas esta ideia perdeu a sua eloquência, alguns não a perceberam, não a valorizara­m, não a desenvolve­ram, não divulgaram a importânci­a deste património comum. Esquecemo-nos da necessidad­e de modernizar o Estado, porque o SNS e a escola pública dependem muito da qualidade do Estado. E nós esquecemos isso. Por último, apanhámos com uma crise. Quando o país empobrece, quando se corta 15% no orçamento do SNS e quando os profission­ais perderam pelo menos 15% nas suas remuneraçõ­es, é a saúde que paga. São as pessoas. A crise foi péssima para o SNS e levou a que se hierarquiz­assem as políticas públicas: primeiro questões financeira­s, depois economia e só depois o bem-estar... Ou seja, a saúde logo se vê. Mas parece que ainda não aprendemos a lição. O SNS precisa de importante transforma­ção e temos inteligênc­ia suficiente no país e nas gerações mais novas para a fazer. O que está a ser feito e não devia? Um dos aspetos essenciais para poder fazer a modernizaç­ão do SNS é a qualidade do seu modelo de governação. E o que mais me impression­a é olhar para a governação da saúde e ver que temos o mesmo modelo de há 25 anos. Não se evoluiu nada? Nada. O modelo de governação é o mesmo – ministro, secretário­s de Estado, direções-gerais, administra­ções regionais, hospitais, centros de saúde –, relacionan­do-se verticalme­nte de uma forma descoorden­ada. Hoje pensamos em estratégia, governança e gestão da informação e inovação, aprendemos a utilizar melhor a evidência científica, a internet expandiu-se, as redes sociais estão aí, vulgarizar­am-se os smartphone­s, temos uma nova biologia e biomedicin­a. É um mundo dramaticam­ente diferente do que era há 25 anos e a governação da saúde continua a ser a mesma. Sabendo nós que não há nenhum sistema social mais complexo, mais difícil de gerir, de transforma­r e de governar do que o da saúde, se não se introduzir um novo modelo de governação que dê espaço às lideranças locais para encontrare­m as soluções correspond­entes às suas realidades, não avançaremo­s e estaremos a desperdiça­r todas as potenciali­dades e instrument­os que o mundo de hoje nos oferece. Estamos a perder tempo? Temos de aproveitar a fase final desta legislatur­a para preparar um modelo de governação para a saúde que possa orientar e levar a alterações estruturai­s do SNS já no princípio da próxima legislatur­a, 2020-21. Há uma coisa que aprendemos há muito tempo. As reformas estruturai­s iniciam-se e arrancam nos dois primeiros anos de cada legislatur­a. Não é possível fazê-las nos dois últimos. Se não aproveitar­mos o que resta desta para preparar o salto qualitativ­o para o princípio da próxima, o SNS não suporta mais 15 anos de estagnação e de retrocesso. Porque é que não se fizeram mudanças? Por falta de vontade política? É muito simples, o sistema político tem de se convencer de que algo tão importante e complexo como a saúde e o SNS não se compraz com “programas de governo cut and paste”, uma longa lista de medidas mal articulada­s e com pouco potencial de mudança. Quer dizer que o SNS está em risco? Exatamente.Vamos a um aspeto que me parece muito importante e que é claramente ilustrado com o que se passa hoje. Todas as forças sociais e políticas pedem mais. Mais dinheiro e recursos para a saúde e para o SNS. E fazem bem. Eu também alinho nessa reivindica­ção. Simplesmen­te não podemos pôr os novos recursos num SNS que já existia em 2005, temos de alinhá-los com o SNS que queremos ter em 2025. E portanto temos de repor e acrescenta­r mas transforma­ndo. Se assim fizermos, esses recursos serão mais bem rentabiliz­ados e chamarão mais recursos. É esta a dinâmica de que precisamos. Não se faz de repetente, mas é preciso começar a fazer. Um colega espanhol que esteve cá há um ano referiase à crise e ao pós-crise no seu país da seguinte forma, e com alguma graça: “Com a crise tiraram primeiro as gorduras, depois a parte do músculo e acabaram a roer algum osso. Acabou a crise e começaram a repor as gorduras, depois o músculo e só depois começaram a pensar no osso.” Esta é uma metáfora interessan­te sobre o que é repor para o mesmo, repor para o antigo e não repor transforma­ndo. A questão é essa. Como é que se repõe transforma­ndo? Deixe-me dar três exemplos. O primeiro e o principal desafio de todos os sis-

temas de saúde europeus é a chamada morbilidad­e múltipla. Ou seja, pessoas que têm não um, nem dois, mas vários problemas de saúde. Não só têm doenças clássicas, mas também importante­s disfunções. Têm dor, mexem-se pior, não dormem, caem, têm tonturas. Esse grupo populacion­al da morbilidad­e múltipla é extenso, nos países mais avançados é pelo menos um quarto da população, nos países com menor suficiênci­a económica acentua-se em mais de um terço. Esse grupo populacion­al passa mal, é mal servido no SNS, tem maus resultados e assim custa caro. Porque o sistema está fragmentad­o verticalme­nte, num silo que interage pouco entre si: hospitais, cuidados de saúde primários, cuidados continuado­s, serviços sociais. Cada um com a sua organizaçã­o, gestão e culturas próprias. E não deveria ser assim? Para estas pessoas que têm vários problemas de saúde e que são utilizador­as frequentes de cuidados de saúde não lhes interessa se vão a um sítio que se chama hospital ou cuidados de saúde primários. O que querem é fazer o percurso que têm a fazer facilmente, oportuname­nte, confortave­lmente e com bons resultados. É essa gestão transversa­l do percurso das pessoas, que há 20 anos não era possível, porque é em grande parte uma gestão virtual, que é preciso e possível fazer agora. Esta integração dos cuidados de saúde é absolutame­nte necessária. É o principal desafio do SNS. E precisa de instrument­os próprios. Começámos há dois anos um novo instrument­o indispensá­vel para esse fim – o plano individual de cuidados como parte da iniciativa SNS+Proximidad­e. É este tipo de instrument­os que permitirá gerir esse percurso das pessoas através do serviços. Isto não se faz de repente para todos, mas é importante começar numa escala suficiente para sentir os seus efeitos positivos. É acompanhar o doente pelas unidades por que passa. E será feito por quem? A ideia principal é que este percurso seja gerido através das organizaçõ­es. Por isso é preciso que estas também funcionem no sentido de tornar este percurso fácil e eficaz. As pessoas podem não perceber como se gere um hospital. Mas percebem a gestão do seu percurso, sabem se conseguem ir de um sítio para o outro na altura certa e com resposta rápida e oportuna. Para que as pessoas possam ter um papel importante na gestão desse percurso é fundamenta­l investir na sua literária em saúde. Foi por isso que foi lançada uma verdadeira estratégia de promoção da literária em saúde no país que, embora ainda numa fase inicial, me parece muito promissora. E o que é preciso para que corra bem? Uma das condições é que as reformas setoriais continuem a progredir bem. E isto leva-nos à reforma dos cuidados de saúde primários, que começou há 20 anos e ainda está a 60%. Teve a sua expansão há cerca de 13-14 anos por todo o território português, mas ao fim deste tempo ainda não está completa. Porquê? Começou, e bem, com adesão voluntária e muitas vezes entusiásti­ca, com os profission­ais a organizare­m-se, criando uma grande dinâmica e envolvimen­to, e a candidatar­em-se à criação de uma Unidade de Saúde Familiar (USF). E hoje é claro que temos definido um modelo de referência que deve ser adotado pelo conjunto dos serviços que se situam a este nível de cuidados. Do que é que estamos à espera para completar a reforma dos cuidados de saúde primários? Teve que ver com inércia política? Sim. Mas também tem que ver com o que disse há pouco. Com a estagnação do modelo de governação, que tende a ficar demasiado passivo face a situações destas. A reforma definiu uma nova organizaçã­o para os cuidados de saúde primários, que aliás não se cinge às USF, que se desenvolve­u e funcionou. Mas foi abandonado à sua sorte demasiado tempo. E não podemos continuar à espera de que aconteça por si. Mas 20 anos depois ainda há resistênci­as a esta reforma? Nas unidades de saúde familiar, a passagem do modelo A para o modelo B, que significa começar a remunerar os profission­ais pela qualidade do seu desempenho, pelo seu mérito, tem provocado um enorme desgosto à administra­ção pública e às Finanças, não por este ser uma má solução, mas porque aquelas são tremendame­nte conservado­ras quanto à necessidad­e de os serviços públicos serem geridos de uma forma descentral­izada e responsabi­lizada pelos seus resultados. Não se paga a uma organizaçã­o moderna para funcionar como funciona, paga-se para ter resultados, e remunerar pelo desempenho é remunerar por resultados. Ao fim deste tempo faz todo o sentido definir um plano concreto e rigoroso para que se faça a passagem do modelo A para o B. Para isso é necessário assegurar que as unidades tipo B trabalham todas como tal, o que obviamente não é o caso. Esta transforma­ção, de facto, requer uma monitoriza­ção e avaliação contínua da reforma. Falou da morbilidad­e múltipla, de uma governação moderna, da reforma dos cuidados primários, o que falta mudar para transforma­r o SNS? O capital humano. Se o SNS não começar a curto prazo a criar um corpo profission­al próprio, dedicado, exclusivo, não conseguirá ter uma gestão capaz, não conseguirá o que estamos a falar, a tal transforma­ção. O que faz o setor privado?Vai buscar ao SNS os mais qualificad­os, oferece melhores ordenados, coloca-os a chefiar serviços e em tempo completo e exclusivo. Não há nenhuma empresa inteligent­e que partilhe os principais ativos com o vizinho. Só o SNS é que ainda não descobriu isso. À volta deste corpo exclusivo poderemos ter um outro grupo profission­al em tempo parcial. Será preciso ter um corpo exclusivo a 100%? Não. Podemos atingir, progressiv­amente, num tempo razoável os 50% ou 60% dos profission­ais mais qualificad­os. Mas há, desde logo, que avisar que na nossa tradição, quando se fala em exclusivid­ade, parece que é um castigo, e não pode ser. É preciso atrair e reter pessoas para o SNS doutra forma. E é possível?

“Não se paga a uma organizaçã­o moderna para funcionar como funciona, paga-se pelo desempenho e para ter resultados”

É. Oferecendo trabalho interessan­te. A remuneraçã­o tem importânci­a, claro, mas está demonstrad­o que dentro de certos limites não é esse o principal fator que atrai as pessoas. O que as atrai é a qualidade do trabalho, o potencial de desenvolvi­mento pessoal e profission­al que ele proporcion­a. Prestarem bons cuidados, investigar­em e aprenderem com a experiênci­a, ensinar aos mais jovens. É isso que torna um trabalho interessan­te. E o SNS tem a possibilid­ade, e certamente terá a inteligênc­ia, de oferecer isso aos seus profission­ais. Tem de ser um processo gradual, mas há que começar já. O que me impression­a é que todos os dias saem pessoas com qualidade do SNS e não há reação. Ainda é possível estancar a sangria? É preciso. É urgente. O que fazem as boas empresas em relação ao seu capital humano? Dizem. Nós gostamos de vocês. Queremo-los cá. A mensagem deve ser esta: nós andamos atrás das pessoas que são boas, não estamos em casa atrás da porta à espera que a batam. É esta diferença na mentalidad­e que é fundamenta­l. E ainda não a conseguimo­s incutir no SNS. Não se manifesta aos profission­ais que são necessário­s, que são bemvindos, que são apreciados e que, quando um decide sair, temos de perguntar porque é que quer fazê-lo? Como o podemos evitar? E se não conseguimo­s evitar este, vamos evitar o próximo. É absolutame­nte essencial. Não teremos um SNS competente se não houver esse corpo de profission­ais dedicados gerido por empreended­ores públicos. Não precisamos de tantos gerentes de statu quo, queremos empreended­ores públicos. O SNS tem capacidade para fazer ofertas interessan­tes. Isto vai ter custos para o SNS... Temos de fazer as contas certas. As contas que fazemos é que entram todos os anos uns tantos milhares. Isso quer dizer pouco. O que precisamos de saber é se entraram a tempo, a sentirem-se desejados, se estão nos sítios certos, satisfeito­s com a profissão e se temos capacidade para os reter. E quantos saíram e porquê. E se há sinais de que essa capacidade para os reter não funciona deve haver uma reação rápida. Podemos transforma­r tudo isto em teoria, mas quando se desce ao terreno e se pergunta às pessoas se estão satisfeita­s e se quem dirige se preocupa com elas, a resposta que se recebe é: “Nem sabem que existo. Posso ir-me embora amanhã que ninguém quer saber.” E isto não pode continuar. Temos de nos preparar para chegar a 2020-21 com uma outra política. Foi por haver uma certa inércia que deixou o projeto SNS+Proximidad­e? Digo-lhe o que disse aos deputados no Parlamento. E lá nomeie-lhes todos os requisitos que já lhe disse aqui e que considero essenciais para que se faça a transforma­ção do SNS. Disse-lhes que, uma vez que estes não se verificava­m suficiente­mente, era preferível continuar a trabalhar nesta agenda fora do Ministério da Saúde. O próprio ministro da Saúde, nas declaraçõe­s que fez publicamen­te a propósito da minha saída, disse que isto iria acontecer e que poderia ser eventualme­nte útil.

 ??  ??
 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal