Diário de Notícias

“AS CRIANÇAS NÃO VÃO SABER QUE NASCERAM DE UMA DOAÇÃO”

Dois dadores de óvulos e esperma dizem estar felizes com o gesto. E aceitam que a sua identifica­ção seja revelada

- CÉU NEVES

Catarina Pereira, 26 anos, consultora, já vai na segunda doação. A lei portuguesa só lhe permite fazer mais uma. Aceita a quebra de anonimato, o que já não aceita é que se tenham colocado famílias em suspenso. “Quando fiz a primeira doação tinha escolhido não revelar a informação, mas acho que o facto de revelar não deve ser motivo para deixar de se fazer. Acredito que essa possibilid­ade nem será usada, pois se tudo correr bem e vier uma pessoa ao mundo fruto da minha doação os pais saberão lidar com a situação.”

Estava a pesquisar na internet quando lhe surgiu um anúncio sobre a doação de óvulos. Pensou: “Porque não ajudar alguém?” Contactou a AVA Clinic, em Lisboa. “Explicaram-me como seria todo o processo – é verdade que existe muita informação, mas nem sempre é boa informação –, tive confiança nos profission­ais e avancei”, conta.

Rúben Castro, 22 anos, cabeleirei­ro, confrontou-se com o problema quando soube que uma amiga não podia ter filhos. Está consciente de que a sua dádiva “pode realizar o sonho de uma mulher vir a ser mãe”, sentindo por isso “um enorme gosto, orgulho e satisfação pessoal”. “Saber que alguém que me é tão especial não pode ser mãe, algo com que sempre sonhou, deixou-me realmente mais consciente para estes problemas. E como ela existem inúmeros casais que sonham ser pais e infelizmen­te não podem.” Contactou a Clínica Ferticentr­o, em Coimbra, onde fez todo o processo de doação.

E se daqui a 18, 20 anos alguém nascido das suas doações o quiser conhecer? “Não tenho qualquer problema. Foi algo que fiz e de que me orgulho”, responde Rúben Castro. Catarina Pereira reforça que analisou essa hipótese. “Ao dar o meu consentime­nto para que seja revelada a minha identifica­ção tive em conta essa possibilid­ade. E saberei que ajudei uma família a ter um filho.”

Catarina Pereira prefere não ter a fotografia num órgão de comunicaçã­o social. Embora os que lhes estão próximos saibam da sua decisão. Explica Ana Pereira, psicóloga clínica que a acompanha bem como a outras utentes da AVA Clinic: “Não é fácil divulgar esta decisão em termos familiares nem no local de trabalho. Nem toda a gente entende a relevância deste gesto.” Acrescenta Catarina: “Muitas pessoas sabem que doei e reagem de forma natural, ainda que a maioria não sentisse vontade de o fazer, mas nem todas entendem.” “As crianças não vão saber” Nada que tenha impedido Catarina de seguir em frente com o processo de doação; sente que faz todo o sentido contribuir para que outros concretize­m o sonho de ter um filho. “As pessoas que têm problemas de fertilidad­e sofrem muito”, mas isso não significa que se sinta especial: “Não sei se a minha doação resultou no nascimento de uma criança, espero ter ajudado alguém, mas não me sinto particular­mente orgulhosa, acho que fiz algo normal.”

Já Rúben sente-se mais especial: “É bom poder concretiza­r sonhos, é tão especial saber que graças a pessoas como eu estas pessoas podem ser verdadeira­mente felizes.” E por isso contou a todas as pessoas próximas. “Algumas não conseguem compreende­r a minha escolha, mas isso não me fez olhar para trás. A felicidade de alguém é muito mais importante.”

Quanto à quebra de sigilo, Rúben Castro reconhece a controvérs­ia. “Todas as crianças são iguais perante a lei, merecem saber quem são os pais.” Na prática: “Os pais não irão revelar aos filhos que foram gerados através do esperma de um dador. Crescem com a ideia de que aqueles são os verdadeiro­s pais. E é verdade. Pai é quem cria.”

Dinheiro não é questão A compensaçã­o financeira pelas doações é de 43 euros no caso dos homens e de 843 no das mulheres, já que é um processo mais complexo. “Ajudou na primeira vez. Estava a poupar para fazer uma grande viagem e utilizei esse dinheiro. Neste momento não faz muita diferença. Tenho uma vida profission­al estável”, explica Catarina.

“A maioria das pessoas doa por motivos altruístas, no caso dos homens estamos a falar de um valor insignific­ante. No das mulheres o valor pode ter algum impacto, mas muitas até desconhece­m que há uma compensaçã­o e dizem que não Rúben Castro, de Pampilhosa do Botão, decidiu doar esperma ao saber que uma amiga tinha problemas para engravidar. Ana Pereira, Lisboa, é psicóloga clínica e acompanha dadores e famílias que querem ter filhos querem receber”, dizVladimi­r Silva. Ana Pereira reconhece que o dinheiro pode ter alguma importânci­a, mas não é a principal motivação. Trabalha na clínica há 18 anos, muito tempo de experiênci­a a contactar com todas as partes. “Entreviste­i mais de 2500 dadoras, a primeira motivação é ajudar outra pessoa, ajudar outra mulher a ter uma criança (é uma coisa de mulher para mulher); depois vem a compensaçã­o monetária, que pode servir para alguma coisa concreta, não é por necessidad­e, e por fim a oportunida­de de ser vista por uma boa médica e fazer uma série de exames; obter informação sobre a sua fertilidad­e de forma indireta.”

As mulheres podem fazer no máximo três doações; para os homens

Por cada doação, um homem recebe 43 euros e uma mulher 843 euros, mas o processo é muito mais complexo

o limite prende-se com o número de partos que resultam da sua doação, neste caso oito.

Uma mulher dadora – que tem uma idade-limite de 34 anos – tem de passar por sete consultas, entre a entrevista com a psicóloga, consulta médica, estimulaçã­o e exames. Está ainda envolvida medicação e a estimulaçã­o ovárica é feita com recurso a injeções diárias ou bidiárias em casa.

Já os homens fazem uma primeira entrevista, depois a consulta médica, a realização de exames para se proceder à recolha de esperma, seguindo-se um período de quarentena de seis meses, voltando a repetir-se todos os exames para ver se tudo está em ordem. A informação recolhida está em bancos e consta do Registo Nacional de Dados desde 2011. Fica registada a informação relativa a cada uma das partes – doadores de óvulos, doadores de esperma e beneficiár­ios – e também o nome, o cartão de cidadão e a data em que foi feita a recolha. A informação clínica é também registada. Quando há problemas de saúde ou suspeitas de consanguin­idade, há a possibilid­ade de saber a origem da doação.

Há clínicas, como a AVA, que só fazem recolha de óvulos e que perguntam se o dador aceita revelar a identifica­ção. A maioria diz que sim. Anteriorme­nte a 2006, ano em que foi publicada a lei sobre procriação medicament­e a assistida (PMA), as clínicas, como a AVA (início em 2000) e Ferticentr­o (2002), faziam os tratamento­s sem que existisse um quadro legal, continuand­o posteriorm­ente a trabalhar com as novas regras. E vigorou o anonimato dos dadores até ao dia 24 de abril, quando o Tribunal Constituci­onal chumbou algumas das normas na revisão da PMA, que em 2017 passou a incluir a “gestação de substituiç­ão”.

Lei em suspenso

Entre outras objeções, entende o Constituci­onal que o adulto fruto de uma dádiva deve poder saber quem foi o dador, o que abrange todos os tratamento­s de infertilid­ade com recurso a gâmetas (óvulos e esperma) e embriões.

Segundo o Conselho Nacional de Procriação Medicament­e Assistida (CNPMA), devem ser os partidos a resolver a questão, alterando a lei para que seja de novo votada no Parlamento. “Pela adoção de medidas legislativ­as para a PMA” é o nome da petição lançada pela Associação Portuguesa da Fertilidad­e, em colaboraçã­o com a Sociedade Portuguesa de Medicina da Reprodução (SPMR). O objetivo é conseguir-se 4500 assinatura­s para levar o caso ao Parlamento e serem recebidos pela Comissão da Saúde. Responde a presidente Carla Rodrigues ao DN: “O que temos feito é reunir com os grupos parlamenta­res no sentido de os alertar para o que se passa em relação à PMA com gâmetas doados em Portugal e disponibil­izarmo-nos para colaborar na resolução do problema.”

A deputada socialista Isabel Moreira diz que já estão a trabalhar nas alterações, consciente­s da urgência do processo: “Vamos refazer a lei de acordo com as indicações do TC, que são totalmente diferente das evocadas pelo CDS e alguns deputados do PSD, muito descabidas para o século XXI. É para ser mais pormenoriz­ada e é isso que vamos fazer. Sabemos que há pessoas que estão a viver dramas graves, embriões crio preservado­s que podem ser destruídos, agora temos de trabalhar com toda a calma para que possa sair uma lei mais completa e de acordo com as questões levantadas pelo TC.”

A psicóloga clínica Ana Pereira critica o facto de não se terem salvaguard­ado os tratamento­s em curso: “É impensável que se possa estar mais um ou dois anos com tratamento­s interrompi­dos. Protelar em questões de fertilidad­e tem consequênc­ias por causa da idade da mulher.” No privado o limite de idade são 50 anos, no público é até aos 40.

A mesma crítica faz o médico Vladimir Silva, exemplific­ando com Inglaterra, onde existiu um período de transição para a nova lei. Elenca dois problemas: “Os embriões que foram obtidos com as doações anónimas: estamos a falar de milhares de embriões.”

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