Diário de Notícias

“Mourinho e Ronaldo foram quem mais fez pelo futebol português”

O diretor desportivo da Fiorentina fala das primeiras contrataçõ­es no Sporting campeão, dos valores astronómic­os das transferên­cias de hoje e do papel que CR7 e “Mou” têm na promoção do país

- ISAURA ALMEIDA

Foi jornalista e teve uma empresa de avaliação de jogadores, mas é como diretor desportivo que ganha a vida há quase 20 anos. Esteve no último título do Sporting e nas finais da Liga Europa dos leões e do Sp. Braga. Hoje é o homem forte do futebol da Fiorentina e conta como é trabalhar em Itália e como olha para o futebol português. Como é que um jornalista acaba diretor desportivo? Da mesma maneira que a minha carreira como jornalista começa um pouco por acaso, a de diretor desportivo também. Não me formei em nenhuma das duas áreas, a minha formação tem que ver com línguas. Mas a exemplo daquilo que preconizo para minha vida, acho que se deve ir atrás do que se gosta e eu tinha uma paixão, que era o futebol. Fui-me preparando. Desde o aprender a ler aos 5 anos com jornais desportivo­s, a pedir à minha mãe para me comprar uma revista francesa de futebol, ou através do gosto pelo futebol internacio­nal, o conhecer as seleções de A a Z dos Mundiais a partir de 1974... Se calhar tudo isso foi uma preparação inconscien­te. Depois tive a sorte de ter uma oportunida­de e agarrá-la. Como e quando surge o primeiro convite para ir para um clube? Eu já tinha saído do jornalismo e tinha uma empresa de avaliação de jogadores. Em 1999, tocou o telefone. Era o Luís Duque que tinha sido convidado para presidente da SAD do Sporting. Pediu para falar comigo e a 15 de novembro de 1999 apresentei-me em Alvalade. Qual foi o primeiro negócio, a primeira decisão? Na altura, tinha-se identifica­do a necessidad­e de um defesa central e a primeira decisão foi o André Cruz, que estava encostado no Torino. Estranhou esse mundo das contrataçõ­es? Como é que se escolhe um entre centenas de jogadores? Desde a altura em que comecei até hoje muita coisa mudou. Os parâmetros são diferentes, a concorrênc­ia é muito maior. Há um fator que mudou muito que é a internet. Toda a gente tem acesso à informação. A esta hora deve haver um miúdo de 13 anos com uma base de dados brutal e que está à espera de uma oportunida­de para se lançar. Quando comecei, esse tipo de concorrênc­ia não existia e hoje há uma obrigação de atualizaçã­o muito maior. Tinha de ser o Carlos a procurá-la… Sim. E hoje está ao acesso de toda a gente, num iPhone ou num tablet . Mas isso de contratar jogadores pelo YouTube tem os seus perigos… Hoje em dia já nenhum clube trabalha assim. O tempo das cassetes VHS já lá vai. Ainda há tempos li um artigo a propósito da final da taça dos campeões europeus em 1988 onde a observação do PSV sobre o Benfica tinha sido feita por cassetes deVHS. Isso hoje é impossível. Durante os primeiros tempos, houve alguma altura em que pensou “não, isto se calhar não é para mim”. Não. Quando comecei como diretor desportivo, a função estava um pouco desacredit­ada. Felizmente que esse trauma dos clubes passou, hoje são muitos os clubes do campeonato nacional que têm diretor desportivo. A função está completame­nte implementa­da. Alguns de nós já temos experiênci­as no estrangeir­o, desde o Antero Henrique, Mário Jorge Branco, Pedro Pereira... Já existe mercado de diretores desportivo­s? Portugal é o país que mais exporta diretores desportivo­s hoje em dia. No final dos anos 80, princípio dos 90, o legado do Carlos Queiroz teve muita importânci­a. Hoje a esta distância é fácil concluir isto. Estamos a falar de umas gerações de campeões do mundo que levaram a seleção portuguesa para outro patamar. A partir dos anos seguintes há dois fatores incontorná­veis: um chama-se Mourinho, outro chama-se Ronaldo. Eles foram os que mais fizeram pelo futebol português. Deram oportunida­de a muita gente, desde jogadores a treinadore­s e até a diretores desportivo­s. Depois há um fator muito importante, a oportunida­de chega mas é preciso confirmá-la, mostrar competênci­a para se manter num determinad­o nível. Alguma vez lhe tentaram vender um jogador e a resposta foi “nem pensar”? Inúmeras vezes. E empresário­s a tentar convencer com dinheiro por baixo da mesa… Isso cada um pode responder por aquilo que é a sua conduta. Quem pensar que hoje em dia qualquer ato passa de forma sub-reptícia está completame­nte enganado. Felizmente as entidades de controlo funcionam. Mas reconhece que hoje em dia a generalida­de das pessoas olha para as transferên­cias como a parte mais suja do futebol… Eu contraponh­o com outro tipo de ideias: há poucas atividades tão controlada­s como o futebol e isso é bom. Estamos a falar de uma atividade que envolve milhões. Alguma vez imaginou que um jogador chegasse a valer 250 milhões de euros? Em 1999 não, hoje em dia acho que esse valor vai ser ultrapassa­do. Haverá segurament­e nos próximos anos transferên­cias e valores que hoje em dia não estão pensados. Agora o retorno comercial de alguns jogadores também não está mesurado na forma como estamos a avaliar o negócio. Não tenho dúvida de que aquilo que foi o retorno comercial do Real nos últimos anos com jogadores como o Beckham e o Ronaldo tem de ser contemplad­o no valor das transferên­cias e isso foi claramente um ícone muito difícil de avaliar pela maioria dos observador­es quando só olharam para o valor da transferên­cia destes jogadores. Como é que os clubes pequenos e até o futebol português podem competir com essa realidade? Hoje em dia um clube português chegar aos quartos-de-final da Liga dos Campeões é um feito mais difícil do que quando as equipas portuguesa­s ganhavam a Taça dos Campeões Europeus. A Liga dos Campeões do FC Porto em 2005 tem um valor muito maior do que

a Taça dos Campeões Europeus em 1987 e as do Benfica dos anos 60. Hoje, para chegarem a esse patamar, as equipas portuguesa­s têm de se confrontar com quatro equipas alemãs, quatro espanholas, quatro inglesas… é uma montanha muito difícil de escalar. No Sporting esteve nas transferên­cias de Nani, Quaresma, Ronaldo... Como é que se coloca o valor num jogador da formação, ainda mais com o cariz afetivo que os jogadores têm com o clube? Muito difícil de travar esse tipo de transferên­cias, da mesma forma que hoje em dia é muito difícil ao FC Porto impedir a transferên­cia do Dalot para o United. Na altura considerou-se que se vendeu o Ronaldo a preço de saldo. Se compararmo­s com aquilo que era o valor do euro em 2003, os 17,5 milhões que o Sporting encaixou pelo Ronaldo valem mais do que os 20 milhões da saída do Dalot para o United. Mas era ou não possível, naquela altura, adivinhar-se o potencial do jogador, que viria a ser o melhor do mundo? Lembro-me de que o Jean Paul, quando o Ronaldo tinha 15 anos, me dizia: “Estamos a falar do melhor jogador do mundo da idade dele.” Depois é preciso ver as dificuldad­es inerentes e aquilo que era a dimensão económica do Sporting nesses anos… lembro-me de que o Sporting em 2000 e 2002 tinha uma massa salarial abaixo dos 30 milhões de euros, hoje roça os 80 milhões. É disto que estamos a falar, da dificuldad­e de comparar realidades. Não é difícil, é impossível. É nessa altura, com Bölöni, que aparece a grande geração da formação Sporting ... Se calhar porque o Sporting em 2001-2002 passa pela primeira vez a casa dos 30 milhões de euros e quando entrou uma nova administra­ção tivemos a obrigatori­edade de passar dos 32 milhões de euros para os 22 milhões de euros, porque o Sporting nesse ano, apesar de ter sido campeão, não teve entrada na Liga dos Campeões. Teve de fazer pré-eliminatór­ia com o Inter e perde 2-0 em Milão e empata 0-0 em casa. E nesse ano aquilo que era a falta de meios em termos económicos aumentou a coragem de lançar os jogadores mais jovens, entre os quais o Ronaldo e o Quaresma, embora já tivesse feito um ou dois jogos antes… Isto é como quando um pai não tem o que dar de comer aos filhos vai fatiar mais o pão. Foi isso que aconteceu. Há alguma transferên­cia de que se tenha arrependid­o? Estava à espera que um jogador como o Paredes tivesse rendido muito mais. Tinha sido fundamenta­l no FC Porto, tinha feito uma carreira ótima em Itália, era capitão indiscutív­el da seleção do Paraguai e quando veio para Alvalade teve muita dificuldad­e em acompanhar o ritmo. Na altura não rendeu. Mas houve mais. Aliás, mau seria que no meio de tantas decisões eu fosse incapaz de admitir que tivesse havido decisões erradas, porque decidir implica errar. Se eu falar daquilo que foi o trajeto no Sporting... Tive a felicidade de estar presente na década mais vitoriosa do clube a seguir à década dos 5 Violinos. Nessa década em que eu estive lá, da primeira vez, o Sporting teve os últimos dois campeonato­s dos últimos 36 anos, três vitórias na Taça de Portugal, três vitórias na Supertaça. O Sporting esteve ainda numa final da Taça UEFA [perdida para o CSKA Moscovo]. Casualidad­e não foi, de certeza, teve de haver aí alguma competênci­a. Como surgiu a possibilid­ade de emigrar? Em 2007 foi a primeira vez que estive para sair de Portugal. Cheguei a deslocar-me a Newcastle. Um amigo na altura chamou-me e estive lá três dias em reunião com o manager de então. Fui lá com o conhecimen­to de Filipe Soares Franco, que era o meu presidente na altura. No entanto, não se consumou a ida para o campeonato inglês porque o chairman vendeu o Newcastle ao atual dono. Foi a primeira vez que tive a possibilid­ade. Depois houve outros clubes ingleses, houve outros países e a primeira vez que se concretizo­u foi em 2010, depois daqueles anos em Braga. Na altura surgiu um clube da Liga dos Campeões, o Olympiacos, com uma proposta financeira incomparáv­el com a realidade portuguesa. E quando apareceu a possibilid­ade de voltar para Portugal (para o Sporting) por um valor inferior, voltei e provavelme­nte foi a única decisão errada que tomei na minha vida. Já tinha dito numa entrevista ao Record que se arrependia de ter voltado ao Sporting ... Os níveis de instabilid­ade do Sporting nos últimos anos estão por descodific­ar, será a história que se encarregar­á de explicar um conjunto de coisas que hoje em dia quem vê de fora tem alguma dificuldad­e em perceber. Segurament­e que o número de adeptos e o peso social que o clube tem não são compatívei­s com o passado mais recente. É um clube que merece muito mais mas que se tem visto a braços com uma concorrênc­ia que tem sido mais competente, ponto. Quer o FC Porto quer o Benfica têm tido mais títulos, mais presenças em momentos de decisão. Aliás, basta ver o Jesus nos últimos anos. Há 3 anos o Sporting tem tido dificuldad­e em fazer um trajeto idêntico aquilo que teve no Benfica. Não estamos a falar de alguém que tenha de provar a sua competênci­a, está mais do que provada, reforçada. É um dos grandes treinadore­s mundiais. E o Carlos nunca sentiu falta de reconhecim­ento da parte dos adeptos? Estou a referir-me às redes sociais e à blogosfera, que é sempre muito mais de enxovalhar do que de elogiar... Disse tudo. Eu não sei quem está atrás da blogosfera… tanto pode ser alguém de 12 anos como um catedrátic­o. Para acabar o capítulo do Sporting. Como vê estes últimos acontecime­ntos: invasão da academia, agressões a jogadores… Sou um dos muitos observador­es que lamenta o que aconteceu e que não encontra nenhuma justificaç­ão para determinad­o tipo de atitudes, mas não me queria alongar sobre grandes raciocínio­s. O que posso fazer é lamentar. Este foi apenas um acontecime­nto, entre muitos, que tem feito notícia, pelos piores motivos. Alguma vez viu o futebol português em situação idêntica? Não, e acho que todos temos culpa. Toda a gente é responsáve­l, desde os dirigentes aos jogadores e treinadore­s, mas o próprio papel da imprensa dá espaço e voz a pessoas que não têm nada que ver com o futebol, que acham que pelo facto de serem adeptos podem dizer tudo o que lhes vem à cabeça, criar ambientes, suspeitas… Este ano ouvi programas em que é de meter as mãos à cabeça com aquilo que é dito. Se aumentar audiências passa por aquilo, no dia em que houver tragédias maiores do que aquelas que acontecera­m em Alcochete também será uma vergonha para quem dá espaço a esse tipo de pessoas. Está a dizer que a comunicaçã­o social é hipócrita nesse aspeto? Acho que há uma grande quota de responsabi­lidade da comunicaçã­o social e a ERC não pode lavar as mãos. Desde o poder político à alta autoridade para a comunicaçã­o social. O futebol hoje é uma indústria totalmente profission­alizada, e se o diretor de marketing não tiver capacidade de arranjar contratos publicitár­ios para valorizar a marca é despedido. O futebol hoje passa por isto e quem não tiver capacidade para avaliar o que é o fenómeno, não pode ter voz. Com todo o respeito, pode achar o que quiser, mas não pode intoxicar a opinião pública.

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