Diário de Notícias

A narrativa política está a dividir a zona euro

- POR WOLFGANG MÜNCHAU

As narrativas são importante­s. Um amigo avisou-me uma vez para não usar a palavra “narrativa” porque era uma maneira enviesada de dizer “histórias”. Mas as narrativas são tipos especiais de histórias. Elas são os enredos que contamos uns aos outros, até acreditarm­os neles.

Tenho acompanhad­o as narrativas sobre a integração europeia nos maiores Estados membros da UE com uma incredulid­ade crescente. Uma das causas da vitória do brexit foi a linguagem do eurocetici­smo e a falta de uma contramens­agem inteligent­e. Histórias semelhante­s estão agora a dividir a zona euro.

Um conhecido colunista político do Der Spiegel referiu-se recentemen­te aos italianos como mendigos que não têm a decência de agradecer. Por trás desse insulto vergonhoso, há uma crença muito difundida entre os alemães de que eles estão a financiar a UE, e a Itália, em particular. Mas a verdade é que a Itália é um contribuin­te líquido para o orçamento da UE, gere excedentes no seu saldo orçamental primário e na sua conta-corrente, e nunca beneficiou de resgates alemães.

Outra conversa comum na Alemanha, mas também em muitos países de língua inglesa, é que a França é um caso económico bicudo. Poucos divulgador­es dessa ideia parecem consciente­s do facto de que o desempenho económico da França é semelhante ao da Alemanha desde a criação da zona euro há quase 20 anos.

O que é particular­mente chocante a respeito destas narrativas espúrias não é apenas o desprezo e a ignorância que refletem, mas o modo casual como elas são montadas. Elas fazem parte do folclore comum e são tidas como verdadeira­s porque toda a gente diz o mesmo tipo de coisa há anos.

Esta tendência pôde ser observada no Reino Unido durante o período que antecedeu o referendo do brexit. Se é dito às pessoas para associarem a palavra “Bruxelas” a “burocrata” durante duas décadas, como ficar chocado quando elas votam para se libertarem da odiada burocracia?

A lição que eu tiro do brexit é que as narrativas moldam a política. O governo populista de Itália não é um acidente eleitoral, como os comentador­es políticos italianos moderados nos querem fazer acreditar. É o que acontece quando uma desacelera­ção económica prolongada põe o eleitorado contra o sistema. A Itália costumava ser um dos países mais pró-europeus. Segundo o último inquérito do Eurobaróme­tro, é agora o mais eurocético.

As narrativas também são importante­s na análise política. Aqui enfrentamo­s uma crise diferente, a da autocensur­a. No auge da crise da zona euro, fui sumariamen­te convocado para fazer parte de um grupo de especialis­tas para ajudar a desenvolve­r ideias. Lembro-me bem da declaração de abertura de um economista alemão, que anunciou que o grupo não deveria sequer considerar propostas que o governo alemão já havia rejeitado. Era uma referência a uma eurobond mutualizad­a, o “aquele cujo nome não deve ser pronunciad­o” das discussões sobre a política da zona euro. Ao ler um recente relatório de 14 economista­s franceses e alemães sobre a zona euro, que surpreendi­a pela falta de ambição, tive uma sensação de déjà vu.

Conheço muitos economista­s que, em privado, concordam com a afirmação de que a zona euro requer um ativo seguro mutualizad­o. Mas quando põem os seus nomes em relatórios sobre o assunto começam a falar como políticos.

Se o realismo for o nosso guia, como deveria ser, então a realidade da zona euro deve ser tudo o que importa. O argumento a favor dos títulos mutualizad­os é que, sem eles, o sistema financeiro da zona euro nunca poderá ser estabiliza­do. A zona euro é uma união monetária em estado de crise semiperman­ente.

Eu entendo o argumento de que as fronteiras políticas devem ser respeitada­s. A resolução da crise da zona euro é sobre o compromiss­o e a adoção de segundas ou terceiras melhores opções. Mas estremeci quando ouvi comentador­es políticos dizendo que Angela Merkel estava de parabéns quando finalmente deu a sua resposta a Emmanuel Macron sobre a reforma da zona euro.

A chanceler alemã disse não a quase tudo o que o presidente francês propôs. A única concessão significat­iva é uma facilidade de empréstimo de curto prazo para países em dificuldad­es, mas em condições que provavelme­nte serão inaceitáve­is para Itália em particular. Não ouvi ninguém a tentar sequer explicar como é que isso poderia ajudar a reduzir a instabilid­ade.

O mesmo é válido para a ideia dos 14 economista­s de criar uma eurobond sintética através da securitiza­ção da dívida. Esse é o mesmo método que foi usado para criar os instrument­os financeiro­s tóxicos na década anterior. A narrativa é semelhante ao que era então. É-nos dito que os riscos aparenteme­nte não estão correlacio­nados. Só que a forte movimentaç­ão paralela dos rendimento­s dos títulos italianos e gregos sugeriria o contrário.

O único antídoto conhecido para narrativas enganosas como essas é dizer a verdade. Atualmente, a maior ameaça à zona euro é a combinação tóxica dos pregadores do ódio com aqueles que não ousam dizer a verdade aos poderosos.

“A maior ameaça ao bloco é a combinação tóxica de desconfian­ça e inverdades”

“A lição que eu tiro do brexit é que as narrativas moldam a política”

“Narrativas são tipos especiais de histórias, são enredos que contamos até acreditarm­os neles”

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Os líderes da França e da Alemanha, Emmanuel Macron e Angela Merkel, apareceram juntos e felizes no G7, neste fim de semana
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