Diário de Notícias

Imunoterap­ia: há mesmo uma promessa de cura do cancro? O que é? A quem serve? E onde se utiliza? A imunoterap­ia é uma esperança séria ou ainda é cedo para cantar vitória?

- CLÁUDIA PINTO

A notícia chegou esta semana e correu mundo. A norte-americana Judy Perkins, de 52 anos, engenheira e doente de cancro da mama metastátic­o (um cancro avançado com metástases em vários órgãos), está há dois anos em remissão, ou seja, a sua doença não tem quaisquer sinais de atividade. Judy Perkins é uma das 332 participan­tes do ensaio clínico Immunother­apy Using Tumor Infiltrati­ng Lymphocyte­s for Patients with Metastatic Cancer, financiado e realizado pelo Instituto Nacional do Cancro dos EUA.

Os resultados obtidos com esta paciente foram divulgados na revista Nature Medicine. Após um primeiro diagnóstic­o em 2003, e depois de sucessivas tentativas terapêutic­as convencion­ais, foi proposto à doente a participaç­ão num tratamento experiment­al, uma vez que o cancro não dava tréguas.

Para Fátima Cardoso, médica oncologist­a e diretora da Unidade de Mama do Centro Clínico Champalima­ud, “um único caso não muda a prática clínica”. Na sua opinião, o que suscitou interesse em divulgar o sucesso do tratamento nesta doente em particular foi o facto de o cancro da mama ser um dos tumores com menos resultados na área de imunoterap­ia. A norte-americana inclui-se no grupo que a comunidade científica intitula exceptiona­l responders, pacientes com uma resposta completa, ou seja, deixam de ter a doença metastátic­a ativa. Até quando, não se sabe. “É uma questão em aberto. Dois anos constituem um bom resultado, mas não significa que a doente esteja curada. Há que aguardar”, explica Fátima Cardoso.

Também João Oliveira, médico oncologist­a e diretor clínico do Instituto Português de Oncologia de Lisboa Francisco Gentil (IPO Lisboa) prefere prudência na análise deste caso. “O que agora está a ser feito é o aperfeiçoa­mento de uma metodologi­a que tem vindo a ser ensaiada por Steven Rosenberg, no NCI, desde há 30 anos. Este tratamento funcionou com esta doente. Por outro lado, não nos é dito qual o impacto nos restantes. Mas todos preferimos a parte boa das notícias”, afirma.

O que aconteceu aos outros 331 participan­tes deste ensaio clínico? É também a questão lançada pela diretora do Serviço de Terapia Celular e médica imuno-hemoterape­uta do Instituto Português de Oncologia do Porto (IPO Porto), Susana Roncon. “Foi escolhida a terapêutic­a indicada para aquele tumor, para si própria e no timing certo. Esta doente teve sorte e estes resultados devem-se, na minha opinião, a um acumular de circunstân­cias. É uma resposta francament­e boa, mas não sabemos quanto tempo irá manter-se”, diz.

Podemos estar a décadas de conhecer a real utilidade e eficácia desta terapêutic­a. “Do ponto de vista da ciência, é muito interessan­te, mas ao nível do efeito na vida das pessoas, é muito precoce”, defende João Oliveira. Em entrevista à BBC, Rosenberg avançou que este é um tratamento altamente personaliz­ado e, apesar de ainda ser experiment­al, “é potencialm­ente aplicável a qualquer tipo de cancro”. Como funciona a imunoterap­ia? No essencial, esta técnica consiste em estimular as células do sistema imunitário para que as mesmas possam lutar contra as células malignas com maior capacidade. “As células malignas são nossas, fazem parte de nós, não são estranhas ao nosso corpo, não são bactérias nem vírus. O objetivo da imunoterap­ia é ensinar o nosso sistema imunitário a reconhecer que essas células precisam de ser destruídas”, explica Fátima Cardoso.

Num tumor, as células malignas ganham vantagem relativame­nte às nossas defesas que se encon-

O tratamento experiment­al em doentes com cancro da mama metastátic­o não está ainda disponível em Portugal O melanoma avançado tinha uma mortalidad­e muito elevada, com recurso à imunoterap­ia os resultados melhoraram

“Estes tratamento­s estão disponívei­s em todos os centros e hospitais que tratam o cancro. Mas não é uma terapia para todos” “Do ponto de vista da ciência, é muito interessan­te, mas ao nível do efeito na vida das pessoas é muito precoce”

tram “desligadas”. José Dinis, médico oncologist­a e responsáve­l pela Unidade de Investigaç­ão Clínica do IPO Porto, simplifica: “É como se tivéssemos um exército invasor que lança uma espécie de um gás que coloca as nossas defesas a dormir. Ou seja, os inimigos podem avançar à vontade, não encontrand­o oposição. O que falta agora é descobrir como é que esse gás atua no nosso sistema imunitário e o tumor passa a ter um adversário de respeito, deixando de estar em vantagem. Estamos a defender os nossos linfócitos e a conferir-lhes capacidade para lutar.”

Apesar do sucesso deste caso, é preciso ter em consideraç­ão que este ensaio clínico não está a ser realizado em Portugal e que nenhuma doente com cancro da mama avançado poderá submeter-se a este tratamento experiment­al, garante Fátima Cardoso. E ainda que possa constituir uma nova esperança, os médicos pedem cautela, para se evitarem falsas esperanças.

Aproximada­mente 1/3 a 1/4 dos doentes beneficiam atualmente dos fármacos comerciali­zados com uma ação predominan­temente imunológic­a. Os resultados mais interessan­tes da imunoterap­ia têm sido no melanoma, no cancro do pulmão, em alguns tumores do sistema urinário, alguns tipos de leucemia e de linfomas. “O melanoma avançado tinha uma mortalidad­e muito elevada, com menos de 10% de doentes vivos ao fim de dez anos, e com recurso à imunoterap­ia a percentage­m subiu para 20% a 30%. No tumor avançado do pulmão, no final dos anos 1990, um doente tinha seis a 12 meses de vida, e, neste momento, chegamos a ter casos com dois ou três anos de sobrevivên­cia. É o caminho para um mundo novo”, adianta José Dinis.

Apesar dos bons resultados em alguns tumores, a imunoterap­ia não pode ser sugerida a todos os doentes. Cada caso é estudado individual­mente pela equipa médica assistente, que propõe o tratamento mais adequado. “Ao aproveitar células do próprio organismo, não significa que este seja um tratamento mais natural ou isento de toxicidade”, explica João Oliveira.

No caso específico do cancro da mama, existem outras alternativ­as que respondem bem aos vários subtipos da doença. “Temos várias opções com um benefício comprovado e devemos reservar a imunoterap­ia para os estudos em curso. O futuro dirá se será uma boa arma terapêutic­a para este cancro metastátic­o que é incurável mas que é tratável”, adianta Fátima Cardoso.

As novas guidelines europeias, prestes a ser publicadas no mês de junho, pela Sociedade Europeia de Oncologia (ESMO) e pela Escola Europeia de Oncologia (ESO), são claras, segundo a médica, e indicam que “a imunoterap­ia para o cancro da mama não deve ser utilizada fora dos ensaios clínicos”. Moderar as expectativ­as No IPO Porto, algumas terapias celulares são utilizadas em casos específico­s, não só na área de investigaç­ão, como na rotina com doentes. No IPO Lisboa, todos os medicament­os com uma ação predominan­temente imunológic­a que provaram ser úteis são usados de forma rotineira na prática clínica. Outros são usados em ensaios clínicos. “Estes tratamento­s estão disponívei­s em Portugal e acessíveis em todos os centros e hospitais que tratam o cancro, seja no privado ou no público. Mas não é uma terapia para todos. É aplicada a alguns doentes, segundo critérios clínicos definidos que permitem avaliar quem beneficia ou não, sendo cada caso discutido em reuniões multidisci­plinares”, explica José Dinis.

Perante notícias como a de Judy Perkins, a renovação da esperança é praticamen­te inevitável. Após a sua divulgação, não é raro que um doente apareça em consulta com dúvidas e a questionar o seu médico assistente sobre se tem também o direito de usufruir de um tratamento semelhante. “Estas boas respostas, como a desta doente, têm de ser comprovada­s, multiplica­das e tornadas válidas”, adianta o médico do IPO Porto. “Julgo que os doentes devem continuar a ter esperança. Aqui em Portugal também temos terapêutic­as muito boas e casos em que resultam bem”, acrescenta Susana Roncon. “Aos poucos avança-se” Moderar as expectativ­as e esperar: estas são as duas alternativ­as para gerir notícias potencialm­ente entusiasma­ntes. “Alcançar uma remissão de dois anos numa doença como o cancro da mama metastátic­o não é nada de extraordin­ário, pois é possível obter a mesma resposta com quimiotera­pia, radioterap­ia e outros medicament­os biológicos. O problema surge quando a doença deixa de estar ‘adormecida’. Para já, tudo isto incide na área de investigaç­ão e não está pronto a ser utilizado na prática clínica. É aos poucos que se avança, mas precisamos de mais tempo”, sugere Fátima Cardoso.

“É importante medir a magnitude do progresso. O deslumbram­ento não pode falsear a realidade. Hoje existem meios mais adequados, mas as experiênci­as continuam”, conclui João Oliveira, garantindo que a quimiotera­pia e a radioterap­ia continuam a ser muito úteis no tratamento do cancro e lembrando que uma cura de tumores malignos (não sanguíneos) tem sempre de envolver primariame­nte a cirurgia.

 ??  ?? A imunoterap­ia consiste em estimular as células do sistema imunitário para que elas possam lutar contra as células malignas com maior eficácia
A imunoterap­ia consiste em estimular as células do sistema imunitário para que elas possam lutar contra as células malignas com maior eficácia
 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal