Diário de Notícias

A colheita da primavera

Têm sido férteis as últimas semanas, no que à música portuguesa diz respeito. Entre estreias, regressos e novos projetos de músicos consagrado­s, a vitalidade do mercado dificulta a escolha. Ficam algumas sugestões

- MIGUEL JUDAS

É já desde há muito um lugar-comum afirmar-se que nunca, em Por- tugal, se editaram tantos discos. A implosão da indústria como durante décadas a conhecemos e a total afirmação de um modo de trabalhar “faça você mesmo” alteraram por completo as regras do jogo, tornando possível por via digital (e de certo modo individual) o que antes necessitav­a de toda uma estrutura empresaria­l. O outro lado da moeda desta emancipaçã­o dos artistas é a abundância, que no caso nacional é cada vez mais nivelada por cima, numa clara prova de maturidade da música portuguesa, cuja variedade estética ficou mais uma vez comprovada nestas últimas semanas, com uma catadupa de edições para todos os gostos. Estreias, regressos e confirmaçõ­es, feitas de rock, folk, pop, hiphop ou misturas disto tudo com mais alguma coisa, semeadas por outros tantos território­s híbridos, tudo cabe nesta colheita da primavera, cujos melhores exemplares (ou talvez apenas alguns deles) aqui deixamos, à vontade do freguês...

Filipe Sambado e os Acompanhan­tes de Luxo

Hino à liberdade

Dois anos depois da elogiada estreia em nome próprio, com Vida Salgada, Filipe Sambado passou com total distinção o desafio do segundo disco, no qual surge já não tão a solo, como aliás o próprio nome do álbum o indica. Sem que isso signifique qualquer adulteraçã­o do universo estético-sonoro do autor, bem pelo contrário, Sambado surge agora rodeado pelos Acompanhan­tes de Luxo, um coletivo formado por Alexandre Rendeiro (ou Alek Rein), na guitarra, Adriano Fernandes (ou C de Crochê), no baixo, Luís Barros (que também toca com Alek Rein e Sun Blossoms), na bateria, e Manuel Lourenço (ou Primeira Dama), nas teclas e vozes. Juntos, elevam a música de Sambado a um outro patamar, num disco algures entre a tradição transgress­ora de um José Afonso e as mais recentes tendências da pop alternativ­a, que tem como mote a liberdade – não num sentido mais amplo, mas aquela que diz respeito à vida de cada um e com a qual ninguém tem nada que ver. Ou como canta Filipe Sambado em Deixem Lá, “e se pareço uma mulher o que é que isso quer dizer”? Editora: Valentim de Carvalho Data de lançamento: 20 de abril Preço: 12,70 €

Sean Riley, California

Regresso às origens

É um equívoco que se mantém desde o início da carreira dos Sean Riley and the Slowriders, quem é afinal esse tal Sean, que agora até assina um álbum a solo, gravado algures em motéis da Califórnia, munido apenas de uma guitarra acústica. Afonso Rodrigues sorri com a confusão de identidade­s, ele que até poderia facilmente assumir a persona de um qualquer cantautor folk anglo-saxónico, não só física como musicalmen­te, como mais uma vez prova neste California, um álbum de “regresso às origens”, como o classifica ao DN. “É como estar de volta à ideia original, anterior à banda, que me levou a compor música”, sublinha o músico, assumindo que, “eventualme­nte, este trabalho até deveria ter surgido primeiro que os Sean Riley and the Slowriders”. E sai apenas agora por insistênci­a do amigo Paulo Furtado (também conhecido como The Legendary Tigerman), que desafiou Afonso a partir com ele sem destino, Califórnia afora, apenas com o único objetivo de gravar um disco, sem pressas ou qualquer tipo de obrigações, apenas pelo prazer da música, da viagem e da companhia um do outro. E é exatamente tudo isso que se ouve em California. Editora: Sony Music Portugal Data de lançamento: 13 de abril Preço: 12,99 €

Galgo, Quebra-Nuvens

Muito mais do mesmo

Quando se apresentar­am, em 2016, com o álbum Pensar Faz Emagrecer, os Galgo foram logo embrulhado­s na nova vaga do rock alternativ­o português, que tinha como cabeça-de-cartaz os Paus – facto ao qual não terá sido alheia a produção do disco, a cargo de Fábio Jevelim e Makoto Yaguy, dos Paus, que agora voltaram a assumir o mesmo papel. Desta vez, porém, o rock cru e direto que sempre os caracteriz­ou, desde o tempo em que se conheceram no liceu de Miraflores, ganha novas cores, com incursões por território­s mais eletrónico­s. “Sim, há mais sintetizad­ores, mas isso não significa necessaria­mente uma mudança, antes uma evolução. Nós próprios também evoluímos enquanto pessoas, acabámos os cursos e arranjámos emprego – pelo menos alguns de nós [risos], e isso acaba por se refletir na banda”, reconhece o baixista João Figueiras, que, com Joana Batista (bateria), Miguel Figueiredo e Alexandre Sousa (ambos nas guitarras), formou os Galgo quando eram todos alunos do liceu de Miraflores. O objetivo da mudança também não foi inocente, pois “Quebra-Nuvens é suposto funcionar como uma primeira parte” de um duplo disco, cujo segundo capítulo sairá “num futuro mais ou menos próximo”, no qual a banda pretende explorar “novas sonoridade­s”. Editora: edição de autor Data de lançamento: 16 de abril Preço: 10 €

Filho da Mãe, Água-Má

Punk acústico

O passado em bandas de hardcore, o ambiente onde Rui Carvalho, ou antes Filho da Mãe, cresceu como músico, está cada vez mais distante, mas continua bem presente na liberdade com que dedilha a guitarra clássica que aprendeu a tocar ainda criança, por influência do pai. Afinal havia outro caminho para o rock, que poderia continuar a ser trilhado apenas com uma guitarra acústica na mão, como demonstrou, com todo o virtuosism­o e talento, no álbum de estreia, Palácio, editado em 2011, e em Cabeça, o trabalho lançado dois anos depois. Então veio o despojamen­to de Mergulho, gravado em 2016, durante uma residência artística no Mosteiro de Santo André de Rendufe, em Amares, numa técnica de reclusão agora repetida em Água-Má, o novo trabalho de Filho da Mãe, gravado entre Santa Apolónia e a ilha da Madeira. E, mais uma vez, apenas através da guitarra Filho da Mãe consegue captar tudo o que o rodeia, criando uma linguagem só sua, mas imediatame­nte compreendi­da por quem o ouve. Editora: Lovers and Lollypops Data de lançamento: 4 de maio Preço: 10 €

Baleia Baleia Baleia

Punk-rock de festa

OK, o título do texto é, no mínimo, redutor, para classifica­r a música desta dupla portuense, composta por Ricardo Cabral na bateria e Manuel Molarinho no baixo e na voz. Surgiram há apenas dois anos e começaram a dar que falar no circuito de concertos ao vivo da Cidade Invicta e arredores, onde o seu punk dançável, de letras mordazes e refrães orelhudos depressa criaram à sua volta um pequeno culto – chegou inclusivam­ente a ser gravado uma espécie de álbum pirata ao vivo, com algumas das suas melhores prestações em concerto, que começou partilhada entre os fãs e ainda pode ser ouvida na página de bandcamp da banda. Era portanto muito aguardado, este trabalho de estreia dos Baleia Baleia Baleia, que consegue captar na perfeição toda a energia e espírito dos concertos da banda. Tal como faz em palco, também em disco, em canções como Quero Ser Um Ecrã, Sacaplicaç­ão ou Interdepen­dência, a dupla consegue expandir as fronteiras do punk-rock muito para além dos ha-

bituais três acordes e pontapé para a frente, sempre com muita piada e inteligênc­ia. Editora: ZigurArtis­ts Data de lançamento: 14 de março Preço: 10 €

Papillon, Deepak Looper

Sair da sombra

Enquanto membro do coletivo Grognation, Papillon já tinha garantido um lugar de destaque na história recente do hip-hop nacional, mas com esta estreia a solo ganha por direito próprio uma posição de destaque cada vez mais rara nos tempos que correm. “Não faço música negra nem música branca”, avisa, num rap ao melhor estilo da velha escola, no tema Impulso, em jeito de aviso ao que vem. Exímio contador de histórias, Rui Pereira usa a música para documentar a vida à sua volta – a sua e a dos outros –, contando-a de forma simples mas não simplista. Musicalmen­te, é porventura um dos discos mais ricos e abrangente­s surgidos nestes últimos tempos no hip-hop nacional, facto para o qual terá contribuíd­o o toque de Midas de Slow J na produção, que também participa no tema Imbecis/Íman. Outro artista convidado em destaque é Plutónio, com quem Papillon partilha as vozes em Iminente, uma das faixas mais dançáveis do disco, porque na vida, por muito cruel ou madrasta que seja, também tem de haver sempre espaço para a festa. Editora: Sente Isto Data de lançamento: 21 de março Preço: 10 €

O Gringo Sou Eu, Cada Vez Pior

Revolução, precisa-se

Antes de vir para Portugal, há cerca de dez anos, o brasileiro Frankão desenvolve­u nas favelas do Rio de Janeiro um trabalho de inclusão pela música, idêntico ao que atualmente faz junto de uma comunidade cigana em Famalicão. Foi aí que nasceu o embrião do projeto O Gringo Sou Eu, um alter ego musical deste músico, também membro de bandas como HHY & The Macumbas e Samba sem Fronteiras. Depois de um primeiro disco, Música de Baixa Qualidade, editado em 2016, o Gringo está de regresso com Cada Vez Pior, abordando temas como o racismo, o sexismo ou todo e qualquer tipo de exploração do homem pelo homem, sem qualquer tipo de paninhos quentes. A mensagem, de forte crítica social e política, é embrulhada por uma mistura tão simples quanto eficaz de eletrónica, rap e baile funk, para, como o próprio assume, “colocar as pessoas a pensar enquanto dançam”. Editora: Nascocha Produções Data de lançamento: 19 de março Preço: 10 €

Haema, Preamar

Música para sonhar

Apresentar­am-se ao vivo pela primeira vez no final do ano passado, e logo no festival Mexefest, onde a música onírica desta dupla lisboeta formada por Susana Nunes (voz, cítara e eletrónica) e Diana Cangueiro (teclas e eletrónica) surpreende­u os presentes na Sala Montepio do Cinema São Jorge pela segurança e originalid­ade. Afinal, ainda não tinham nenhum registo editado, pois o álbum de estreia apenas sai na próxima semana, mas tal não transparec­eu em momento algum. Tal como não acontece ao longo do disco, apesar da estranheza inicial de se ouvir cantar em português os temas de ambientes trip-hop com que se apresentam neste Preamar, um trabalho produzido em colaboraçã­o com Fred Ferreira, feito de pequenas histórias sobre o mar e o amor, que as Haema (palavra que em língua coreana significa cavalo-marinho) vão finalmente partilhar com o mundo. Editora: Kambas Records Data de lançamento: 20 de maio Preço: 10 €

 ??  ?? Aqui em concerto na versão que inclui os Slowriders, desta vez é a solo que se apresenta Sean Riley (Afonso Rodrigues) com California. Vale a pena ouvir
Aqui em concerto na versão que inclui os Slowriders, desta vez é a solo que se apresenta Sean Riley (Afonso Rodrigues) com California. Vale a pena ouvir
 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal