Sempre letras grandes
Se esta coisa de escrever sobre livros não obedecesse a algumas regras – ainda assim, menos do que as aplicadas noutras áreas –, pode o leitor ficar certo de que o espaço ocupado por esta crónica estaria hoje confinado a um rol contínuo de citações, pescadas à linha nestes trabalhos jornalísticos que Herberto Helder (1930-2015) publicou durante a sua passagem por Angola no Notícia – Semanário Ilustrado, nos anos já distantes de 1971 e 1972. Para quem lê aqui, seria só lucro e, seguramente, esse recurso assumiria o papel de uma via rápida para chegar a este livro memorável. Em sentido duplo, pelo menos: desde logo, porque é notável a forma empática, mas sem cedências “populistas”, que o homem que conhecemos como poeta maior utiliza para chegar aos seus destinatários de primeira instância; depois, porque este jornalismo parece, todos os dias, afastar-se de nós mais um pouco, sujeito a códigos e interesses, a espartilhos e “normas de conduta” que só contribuem para eclipsar qualquer surpresa e quaisquer hipóteses de boa (e personalizada) escrita e de exposição de ideias fortes.
Ao longo dos textos aqui recuperados, é fácil perceber-se que Herberto Helder consegue congregar técnica e documentação prévia com dois outros valores, mais subjetivos mas nem por isso menos preponderantes: a insaciável curiosidade e a extrema sensibilidade (não, não é “jornalismo de afetos”…) com que aborda assuntos e interlocutores. Só esse conjunto de “munições”, passe o belicismo, lhe permite escrever, sem deixar de relatar, sem abdicar de refletir, sobre tantos temas, acrescentando-lhes sempre um ponto. Como quem conta um conto, diz-se. Do episódio de um cidadão português notoriamente burlado por uma empresa alemã aos buracos de Luanda após as chuvas, de uma visita “ilustrada” a um mercado local ao que podemos – e devíamos – aprender com a ausência de filtros das crianças, dos domingos na guerra, mais exatamente em Nambuangongo, às palavras que as marés impõem como pragas às falas públicas e, por inerência, à imprensa (em minúsculas…), o autor não deixa pedra sobre pedra. De resto, quando se ganha a velocidade de cruzeiro neste pequeno volume – que deveria aumentar, como manual, a extensa lista das leituras recomendadas para quem sonha ser jornalista –, um dos mais estimulantes desafios passa a ser a tentativa de adivinhar quais serão o rumo e o âmbito do capítulo imediato.
Herberto Hélder entrevista Nelson Ned, “um homem com um metro de altura”, e Carlos do Carmo, numa peça com um alcance e com um recorte que, recordada hoje, espantará até o nosso maior fadista, e não só. Escreve sobre Agustina e sobre Borges ainda sem saber que também lhe estava reservado um lugar entre os eleitos. Ensaia uma descrição hilariante e contundente de um Sporting-Benfica. E não poupa os “pavões” (a expressão é minha, o autor fica assim ilibado) do jornalismo: Enfim, uma citação: “Havia um ar solene, uma sabichice, uma empertigação de quem está com responsabilidades de dizer como é. O que a malta queria, depois de se estatelar um bocado, com um volume de versos ou um livro de contos, era entrar para os jornais. Entrava-se. Começava-se a vestir melhor, ceava-se às vezes no Gambrinus, engordava-se um pouco, aparecia um automóvel que não era exatamente ‘revoltante’. A malta obtemperava acerca do ‘teatro popular’, cinema americano e informática. Alguns mais tolos deslocavam-se com McLuhan debaixo do braço. Os idiotas irrecuperáveis – que viriam a ser ‘os grandes talentos’ – tinham opiniões enormes, nos colóquios, sobre os problemas da educação ou da agricultura industrial.”
Tudo dito, menos isto: minúsculas, o caraças. Com Herberto Helder, em escala desejável antes de voltarmos à poesia, as letras são todas grandes. Reservado o direito de admissão a livros que não ultrapassem as 200 páginas