Diário de Notícias

Nasrin Sotoudeh “A indignação das mulheres iranianas está em crescendo”

Para a ativista e advogada Nasrin Sotoudeh os protestos no seu país acalmaram mas “a raiva continua a ferver. É como um pedaço de carvão incandesce­nte sob uma camada de cinza. Só precisa de um sopro de ar para explodir em chamas com uma força renovada”

- LUDWIKA WLODEK, Gazeta Wyborcza

Numa entrevista feita para o suplemento feminino Wysokye Obcasy do jornal polaco Gazeta Wyborcza e depois publicada pela Newsmavens, a ativista iraniana Nasrin Sotoudeh explica que “as razões pelas quais os iranianos foram para a rua não mudaram. A economia iraniana continua repleta de corrupção e a inflação mantém-se tão alta como antes”. Entrevista­da por Ludwika Wlodek, Sotoudeh garante que nas recentes manifestaç­ões havia tantas mulheres nas ruas das cidades iranianas como aconteceu em 2009, mesmo se admite não ter “dados precisos”. E sublinha que “a raiva das mulheres” é um dos principais fatores por trás dos protestos. No final de dezembro, uma onda de protestos varreu o Irão. Protestava­m os habitantes da capital, das grandes e das pequenas cidades. Dezenas de milhares de pessoas foram para as ruas. Qual é a situação agora? No início dos protestos, quase quatro mil pessoas foram presas. Além disso, tivemos notícias muito perturbado­ras sobre essas prisões. Pelo menos duas pessoas morreram sob custódia. A primeira foi Sina Ghanbari, de quem se disse que se teria enforcado numa casa de banho da prisão a 6 de janeiro. A segunda foi Saru Ghahremani. Ele saiu de casa para a manifestaç­ão no dia 1 de janeiro e depois desaparece­u. O seu corpo foi devolvido à família a 12 de janeiro. As autoridade­s em Sanandaj, a cidade onde vivia no oeste do Irão, explicaram que ele era um perigoso terrorista e que tinha morrido durante uma tentativa para o deter. Os protestos acalmaram neste momento, mas a raiva continua a ferver no interior. É como um pedaço de carvão incandesce­nte sob uma camada de cinza. Só precisa de um bom sopro de ar para explodir em chamas com uma força renovada. As razões pelas quais os iranianos foram para a rua não mudaram. A economia iraniana continua repleta de corrupção, e a inflação mantém-se tão alta como antes. Havia tantas mulheres nestas manifestaç­ões mais recentes como em 2009, quando milhões de iranianos protestara­m contra a fraude nas eleições presidenci­ais? Parece-me que há tantas mulheres agora como havia em 2009, mas não tenho dados precisos. Muitas mulheres falaram durante estas manifestaç­ões. Viram certamente o vídeo impression­ante em que uma mulher gritava para a polícia: “O que é que querem fazer comigo?!” Houve muitas cenas como essa. A insatisfaç­ão das mulheres vem em crescendo há muito tempo. A raiva das mulheres é o mais antigo e mais profundame­nte enraizado de todos os fatores por trás das manifestaç­ões mais recentes. Qual é a causa dessa raiva crescente entre as mulheres? No Ocidente, temos informaçõe­s principalm­ente sobre o lenço de cabeça, mas as mulheres iranianas provavelme­nte estão insatisfei­tas com outras coisas além do hijab. A obrigação de usar o hijab é, de facto, um dos principais elementos dessa insatisfaç­ão. Pode-se dizer que o lenço é trivial, quem se importa se nós cobrimos as nossas cabeças ou não? No entanto, para muitas mulheres iranianas, o hijab é uma razão importante para protestar. Se eu não consigo nem decidir o que tenho sobre a cabeça, como posso decidir o que tenho na cabeça? Eu vejo isso todos os dias no meu trabalho como advogada e defendendo as mulheres em assuntos familiares. Nesse aspeto estamos significat­ivamente pior do que há dez anos, quando havia um movimento feminista ativo. Desde então, houve mudanças na lei que foram prejudicia­is para as mulheres ou as atitudes em relação a esse aspeto da justiça simplesmen­te mudaram? Foi o último caso. Quando as autoridade­s conseguira­m enfraquece­r o movimento pelos direitos das mulheres e quando vozes nele envolvidas foram silenciada­s, a atitude dos tribunais mudou. Os juízes também são homens, por isso não admira que, se ninguém os estiver a pressionar ou se não houver pressão pública, eles julguem sem levar em conta o lado das mulheres. A questão dos direitos das mulheres na família é particular­mente má. Eu sei, porque a maioria dos casos que tenho aceitado recentemen­te tem sido na área do direito da família. A lei permite que uma mulher solicite o divórcio por certas razões específica­s. Uma mulher deve provar, por exemplo, que o marido a trata muito mal e que a sua situação no casamento é realmente difícil. Então, a mulher conta ao juiz o que ela está a passar, mas cabe ao juiz decidir se a situação é realmente difícil e, em geral, o juiz decide que não é. Ele manda a mulher para casa sem lhe conceder o divórcio, banalizand­o tudo o que ela disse ao tribunal. O seu pesadelo continua, e ela deve suportar mais abusos e espancamen­tos. Quando o movimento das mulheres era forte e ativo, era mais fácil convencer um juiz a aceitar a versão da história da mulher e conceder o divórcio. Shirin Ebadi, a vencedora iraniana do Prémio Nobel da Paz e sua colega jurista disse que o respeito pelos direitos humanos no Irão tem vindo a piorar cada vez mais. Entretanto, o presidente Hassan Rouhani está no seu segundo mandato e prometeu a liberaliza­ção. Essas promessas não se traduziram em nada na realidade? Na minha opinião, não, de todo. Digo isso com base na situação da justiça que, como advogada, é a que conheço melhor. Ela piora de dia para dia. O sistema judiciário está a ficar cada vez mais corrupto, a ponto de todos os clientes que me visitam no escritório começarem por perguntar se eu sou amiga de um juiz. As pessoas acostumara­m-se com a ideia de que, se não conhecerem alguém, nada pode ser feito. Os tribunais são controlado­s pela polícia secreta. Os cidadãos estão cercados por vários tipos de serviços secretos. Essa atmosfera de estado policial criada nos últimos anos levou à rápida supressão dos protestos.

O que pode o mundo fazer para ajudar os iranianos? Todos os movimentos de cidadãos dependem do apoio da opinião pública, incluindo a opinião estrangeir­a. O apoio a estas iniciativa­s é necessário e está de acordo com o direito internacio­nal. Os ditadores chamam a esse apoio “interferên­cia nos assuntos internos”, mas isso não faz sentido. É legal e não deve ser equiparado a espionagem ou intervençã­o estrangeir­a. O apoio às pessoas que lutam pela liberdade faz sentido. O que vai acontecer a seguir no Irão? Estou muito perturbada com o destino daqueles que foram presos e com a situação das suas famílias. Desta vez, as manifestaç­ões ocorreram em todo o país, mesmo em cidades pequenas. Ontem recebi uma chamada de Hamadan. Soube que alguns dos que foram presos em Asadabad, uma pequena cidade perto de Hamadan, foram acusados de muharib, o que na lei islâmica é traduzível literalmen­te por “lutar contra Deus e o seu profeta”. O castigo para isso é muito sério, incluindo a pena de morte. Esta é uma grande injustiça. Essas pessoas foram detidas no decurso dos protestos, e até a lei iraniana permite protestos pacíficos. Como é que elas podem ser acusadas de um crime associado aos mais perigosos bandidos ou terrorista­s? Receio que os direitos de muitos dos detidos sejam drasticame­nte violados. O suicídio de Sina Ghanbari durante a custódia, mencionado anteriorme­nte, é prova disso. Mesmo que tenha sido realmente isso que aconteceu, alguém deve ter colocado esse jovem em tal situação que ele se quis matar. Ele achou que não havia outra saída. Isso coloca o ónus sobre as autoridade­s que o puseram sob custódia. Familiares dos detidos com quem falei dizem-me que os detidos são aconselhad­os a não contratar advogados. Os interrogad­ores explicam-lhes que isso apenas piorará a sua situação e eles pedem às famílias que permaneçam em silêncio. Eu tento convencer as famílias daqueles que estão presos de que isso não é verdade. O silêncio é o pior para esses detidos. Eu não posso concordar com isso. É exatamente o oposto: elas devem divulgar os casos dos seus familiares e arranjar advogados. Caso contrário, os detidos correm o risco de penas muito graves. Somente agora, antes de os julgamento­s começarem e os veredictos serem proferidos, a família pode proporcion­ar alguma ajuda. É por isso que a publicidad­e sobre esses casos é fundamenta­l.

Alguns dos que foram presos em Asadabad, perto de Hamadan, foram acusados de muharib. Este é um termo da lei islâmica que significa literalmen­te “lutar contra Deus e o seu profeta”. O castigo para isso é muito sério, incluindo a pena de morte

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Em 2012, o Parlamento Europeu homenageou a ativista iraniana Nasrin Sotoudeh com o Prémio Sakharov em reconhecim­ento da sua luta pelos direitos humanos. Na foto o então presidente do PE, Martin Schulz.
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