As ministras princesas
“A nálise dos certos e errados – a sanar – do estilo das estreantes donas das pastas ministeriais”. Foi este o subtítulo explicativo que o diário ABC colocou num texto, publicado no sábado, no qual, sob a foto de cada uma das novas 11 ministras, apreciou, como se costuma fazer com a ex-princesa (agora rainha) Letícia, “o guarda-roupa das ministras de Pedro Sánchez”, fazendo observações sobre respetivo físico, penteado e habitual apresentação, e sugestões de maquilhagem, acessórios e vestimenta, incluindo “saias mais compridas”, “menos decotes e menos braços à vela”, “mais maquilhagem”, “cuidar mais do cabelo” e outros comentários do mesmo jaez, chegando àquele que o também diário Público considerou o pior, sobre Magdalena Valério, com a tutela do Trabalho (nem sequer referida no texto que lhe é dedicado): “Esta natural da Estremadura de bom físico (...) olhos penetrantes e carroçaria de cá te espero sempre soube tomar partido disso.”
No dia seguinte, face ao coro de protestos e acusações de machismo (e ordinarice, digo eu), a versão digital da peça foi alterada, tentando justificar por que motivo só se debruça sobre as mulheres do governo. É que os homens se vestem todos de igual desde a Revolução Industrial, assevera o ABC, portanto a “decoração” está reservada às mulheres, prosseguindo: “Dando por certo que a inteligência, a experiência e a preparação de cada ministra nada tem a ver com o seu aspeto – ou tem? –, avaliamos os certos e errados do seu estilo que decerto desejam melhorar, já que estarão cientes de que a imagem dos políticos influi de modo subconsciente na perceção que se tem das suas capacidades.”
Portanto o ABC acha que as capacidades de um governante nada têm a ver com o seu aspeto; no entanto considera que faz sentido analisar governantes exclusivamente por isso, desde que, bem entendido, sejam mulheres. Por outro lado, admite que a imagem dos políticos é importante para a perceção das suas capacidades, mas só no caso das mulheres; no dos homens, aparentemente, ninguém quer saber se estão arranjadinhos ou desmazelados, se ostentam boa “carroçaria” e ar de “cá te espero” ou se são uns monos. Por fim, crê que os julgamentos a que se refere se processam a nível subconsciente, ou seja, o ABC está convicto de que estão em causa, nas associações que estabelece entre aspeto e desempenho profissional, mecanismos não racionais; a hipótese de estar a contribuir, a esse nível, para a ideia de que a imagem das mulheres é mais determinante que as suas capacidades profissionais não lhe ocorre. Muito menos que pode ser mesmo daí, do seu subconsciente, que veio a abstrusa ideia de publicar tal estultícia.
Sim, eu sei. Para muitas das pessoas que me leem (aquelas, precisamente, que me leem para discordar e apanhar fúrias – olá, sei que estão aí) o que o ABC fez não tem mal nenhum; o mal do mundo são as feministas como eu, que querem “negar a natureza”. Sendo a natureza, naturalmente, que mulheres e homens são diferentes, e eu “quero que sejam iguais”. Pois, sei que custa muito a perceber, mas aquilo de que estamos a falar não é de diferenças “intrínsecas” e “biológicas”, como elas terem pipi e eles pilinha. É mesmo sobre uma coisa chamada direitos e oportunidades iguais, e sobre a forma como essas construções subconscientes de que fala, sem as perceber, o ABC afetam esses direitos e oportunidades. Porque, por incrível que pareça, fazer saber a meninas, desde que começam a abrir os olhos, que nelas o mais importante é a aparência, enquanto que aos meninos se transmite que é aquilo de que são capazes que interessa, faz uma enorme diferença na forma como se veem, se sentem, se projetam e afirmam. Na autoconfiança que têm, no modo como se relacionam, nos sonhos que acalentam.
E não, não é imaginação. Quando preparei debates televisivos, se sugeria uma mulher desconhecida, invariavelmente me perguntavam: “É gira? É nova?” Sobre homens nunca me fizeram tal pergunta; só queriam saber o que tinham a dizer. Esta visão daquilo que é suposto ser a valia da mulher limita-as (nos) de múltiplas formas. Como nos limita e conforma (e limita e conforma os homens) o facto de se associar sempre a responsabilidade pelos filhos às mulheres, sendo essa limitação não só visível na diferença salarial que persiste como na desconsideração sistemática de que as mulheres são alvo nos seus percursos profissionais – porque o que está subjacente a essa desconsideração é que o seu desígnio é serem mães e donas de casa; estão ali de empréstimo, de passagem.
Não; os papéis de género, os estereótipos de género, não são um produto do delírio vitimista das e dos feministas. São muito reais e têm efeitos muito reais. É por assim ser, e por estarem tão enraizados e naturalizados, que é fundamental desconstruí-los, chamar a atenção para eles. Esta luta, ao contrário do que tantas vezes se diz, não é “simbólica” nem “fútil”. Porque foram os estereótipos de género que até 2015 (2015, leu bem) determinaram que o contrato coletivo de trabalho da indústria corticeira estabelecesse salários mais elevados, na mesma função, para os homens. E são os estereótipos de género que, ao manter a famigerada “divisão de tarefas”, mais contribuem para o declínio da natalidade. Longe de serem uma “luta ridícula”, e “fora da realidade”, são a essência do problema, e de vários problemas. Ridículo é negá-lo.
Para quem nada viu de errado no filme antitabágico da imprestável mãe sem pulmões a análise de um jornal espanhol à maioria de ministras do novo governo também deve parecer normal. Vem tudo do mesmo sítio