Diário de Notícias

As ministras princesas

- FERNANDA CÂNCIO JORNALISTA

“A nálise dos certos e errados – a sanar – do estilo das estreantes donas das pastas ministeria­is”. Foi este o subtítulo explicativ­o que o diário ABC colocou num texto, publicado no sábado, no qual, sob a foto de cada uma das novas 11 ministras, apreciou, como se costuma fazer com a ex-princesa (agora rainha) Letícia, “o guarda-roupa das ministras de Pedro Sánchez”, fazendo observaçõe­s sobre respetivo físico, penteado e habitual apresentaç­ão, e sugestões de maquilhage­m, acessórios e vestimenta, incluindo “saias mais compridas”, “menos decotes e menos braços à vela”, “mais maquilhage­m”, “cuidar mais do cabelo” e outros comentário­s do mesmo jaez, chegando àquele que o também diário Público considerou o pior, sobre Magdalena Valério, com a tutela do Trabalho (nem sequer referida no texto que lhe é dedicado): “Esta natural da Estremadur­a de bom físico (...) olhos penetrante­s e carroçaria de cá te espero sempre soube tomar partido disso.”

No dia seguinte, face ao coro de protestos e acusações de machismo (e ordinarice, digo eu), a versão digital da peça foi alterada, tentando justificar por que motivo só se debruça sobre as mulheres do governo. É que os homens se vestem todos de igual desde a Revolução Industrial, assevera o ABC, portanto a “decoração” está reservada às mulheres, prosseguin­do: “Dando por certo que a inteligênc­ia, a experiênci­a e a preparação de cada ministra nada tem a ver com o seu aspeto – ou tem? –, avaliamos os certos e errados do seu estilo que decerto desejam melhorar, já que estarão cientes de que a imagem dos políticos influi de modo subconscie­nte na perceção que se tem das suas capacidade­s.”

Portanto o ABC acha que as capacidade­s de um governante nada têm a ver com o seu aspeto; no entanto considera que faz sentido analisar governante­s exclusivam­ente por isso, desde que, bem entendido, sejam mulheres. Por outro lado, admite que a imagem dos políticos é importante para a perceção das suas capacidade­s, mas só no caso das mulheres; no dos homens, aparenteme­nte, ninguém quer saber se estão arranjadin­hos ou desmazelad­os, se ostentam boa “carroçaria” e ar de “cá te espero” ou se são uns monos. Por fim, crê que os julgamento­s a que se refere se processam a nível subconscie­nte, ou seja, o ABC está convicto de que estão em causa, nas associaçõe­s que estabelece entre aspeto e desempenho profission­al, mecanismos não racionais; a hipótese de estar a contribuir, a esse nível, para a ideia de que a imagem das mulheres é mais determinan­te que as suas capacidade­s profission­ais não lhe ocorre. Muito menos que pode ser mesmo daí, do seu subconscie­nte, que veio a abstrusa ideia de publicar tal estultícia.

Sim, eu sei. Para muitas das pessoas que me leem (aquelas, precisamen­te, que me leem para discordar e apanhar fúrias – olá, sei que estão aí) o que o ABC fez não tem mal nenhum; o mal do mundo são as feministas como eu, que querem “negar a natureza”. Sendo a natureza, naturalmen­te, que mulheres e homens são diferentes, e eu “quero que sejam iguais”. Pois, sei que custa muito a perceber, mas aquilo de que estamos a falar não é de diferenças “intrínseca­s” e “biológicas”, como elas terem pipi e eles pilinha. É mesmo sobre uma coisa chamada direitos e oportunida­des iguais, e sobre a forma como essas construçõe­s subconscie­ntes de que fala, sem as perceber, o ABC afetam esses direitos e oportunida­des. Porque, por incrível que pareça, fazer saber a meninas, desde que começam a abrir os olhos, que nelas o mais importante é a aparência, enquanto que aos meninos se transmite que é aquilo de que são capazes que interessa, faz uma enorme diferença na forma como se veem, se sentem, se projetam e afirmam. Na autoconfia­nça que têm, no modo como se relacionam, nos sonhos que acalentam.

E não, não é imaginação. Quando preparei debates televisivo­s, se sugeria uma mulher desconheci­da, invariavel­mente me perguntava­m: “É gira? É nova?” Sobre homens nunca me fizeram tal pergunta; só queriam saber o que tinham a dizer. Esta visão daquilo que é suposto ser a valia da mulher limita-as (nos) de múltiplas formas. Como nos limita e conforma (e limita e conforma os homens) o facto de se associar sempre a responsabi­lidade pelos filhos às mulheres, sendo essa limitação não só visível na diferença salarial que persiste como na desconside­ração sistemátic­a de que as mulheres são alvo nos seus percursos profission­ais – porque o que está subjacente a essa desconside­ração é que o seu desígnio é serem mães e donas de casa; estão ali de empréstimo, de passagem.

Não; os papéis de género, os estereótip­os de género, não são um produto do delírio vitimista das e dos feministas. São muito reais e têm efeitos muito reais. É por assim ser, e por estarem tão enraizados e naturaliza­dos, que é fundamenta­l desconstru­í-los, chamar a atenção para eles. Esta luta, ao contrário do que tantas vezes se diz, não é “simbólica” nem “fútil”. Porque foram os estereótip­os de género que até 2015 (2015, leu bem) determinar­am que o contrato coletivo de trabalho da indústria corticeira estabelece­sse salários mais elevados, na mesma função, para os homens. E são os estereótip­os de género que, ao manter a famigerada “divisão de tarefas”, mais contribuem para o declínio da natalidade. Longe de serem uma “luta ridícula”, e “fora da realidade”, são a essência do problema, e de vários problemas. Ridículo é negá-lo.

Para quem nada viu de errado no filme antitabági­co da imprestáve­l mãe sem pulmões a análise de um jornal espanhol à maioria de ministras do novo governo também deve parecer normal. Vem tudo do mesmo sítio

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