Sharp Objects mostra o lado obscuro da raiva feminina
Próxima grande série da HBO é uma produção de luxo protagonizada por Amy Adams. A estreia mundial teve honras de abertura no ATX TV Festival em Austin, Texas
primeiras cenas de Sharp Objects não deixam ninguém perceber o que está prestes a ver. Há uma sombra de angústia, mistério e terror que colide com o mundo banal de um jornal local de St. Louis, Missouri, e uma jornalista que esconde o seu alcoolismo. Realizada por Jean-Marc Vallée, o mesmo responsável pelo sucesso de Big Little Lies no ano passado, a nova série da HBO é uma produção de luxo que vai chegar ao pequeno ecrã a 18 de julho.
A série é uma das mais antecipadas do verão e explora algo raramente mostrado em cinema ou televisão, que provavelmente não teria luz verde há apenas alguns anos. É o buraco mais fundo, negro e desconcertante de uma personagem feminina que tem múltiplas camadas e aparência de normalidade. Uma história medonha, com uma aparência meio gótica, a primeira escrita pela mesma autora de Gone Girl, Gillian Flynn. E com um extra. Amy Adams, que brilhou no filme Arrival em 2016, leva tudo à frente no papel principal: é o pico da sua performance aos 43 anos. Isto (já) não é sobre sapatos
A estreia mundial do primeiro episódio aconteceu na sétima edição do ATX TV Festival, em Austin, e teve direito a um painel de debate entre estrelas, criadores e produtores. “Há muitas histórias sobre homens e violência, homens e raiva e como eles lidam com isso – mas não sobre como as mulheres lidam com a sua raiva e a sua violência”, explicou Gillian Flynn, que começou a escrever Sharp Objects há 12 anos. “Naquela altura, havia muitas histórias sobre mulheres que fazem compras e a grande crise era se conseguiam encontrar os sapatos e o homem certo. Eu queria olhar para algo diferente.”
A personagem de Amy Adams, Camille Preaker, é certamente uma pedrada nesse charco. Entre sonhos estranhos e muitas minigarrafas de vodka, Camille é enviada com relutância de volta à pequena cidade onde cresceu, Wind Gap, porque o seu editor quer uma história de investigação após a morte de uma jovem e o desaparecimento de outra. E nesta série, o local é uma personagem tão forte quanto as pessoas, uma cidade do interior autêntica e muito específica. A propriedade sumptuosa onde vive a mãe de Camille (interpretada de forma convincente por Patricia Clarkson) funciona como um contraste à frugalidade da sua vida, um local assombrado pela morte e por uma relação familiar disfuncional. “Ningúem queria esta história”
A produtora Marti Noxon sublinhou que, até há bem pouco tempo, produções com protagonistas femininas complicadas eram postas nas franjas da indústria, com menor esforço de marketing e promoção. E Gillian Flynn não escondeu as grandes dificuldades em vender a ideia. “Ninguém queria ouvir este tipo de história. Ninguém queria saber de mulheres pelas quais não podemos torcer.”
E Camille não é, de facto, uma personagem que suscite sentimentos positivos. Antes, o espectaAs dor sente-se desconfortável ao assistir à sua intimidade patética e deprimente e talvez por isso tenha demorado tanto tempo a chegar ao pequeno ecrã, apesar de ter por trás Jason Blum, produtor de Foge e títulos como Atividade Paranormal, Marti Noxon, produtora executiva de Buffy A Caçadora de Vampiros, Jean-Marc Vallée, de Big Little Lies, além da incontornável Amy Adams, que é também produtora executiva. A atriz revelou no ATX TV Fest que queria fazer algo assim há algum tempo, mas estava “ocupada” com filmes e com a família. Ela, tal como outros nomes de Hollywood, achou que era o momento certo para investir noutro formato, algo que Marti e Gillian mal podiam acreditar quando começaram a trabalhar na série. O renascimento da televisão
“A televisão está a passar por um renascimento. É um excelente meio para contar uma história”, explicou Amy Adams. Este projeto com o realizador Jean-Marc Vallée aconteceu numa altura em que ambos trabalhavam num filme sobre Janis Joplin, que, segundo revelou, corre o risco de nunca ver a luz do dia.
A ideia inicial de Jason Blum e Marti Noxon também era transformar Sharp Objects em filme, mas a complexidade da história exigia mais que os habituais 90 ou 120 minutos de duração. Assim, a solução para contar os segredos foi transformar Wind Gap em série. “É um formato que serve muito bem para expandir as personagens. O monólogo interno de Camille é quase impossível de captar em 90 minutos”, disse Amy Adams. “Mudou a forma como eu abordo uma personagem. Vou agora voltar a fazer cinema e pergunto-me como posso contar essa história numa hora e vinte minutos…”
Tal permite também introduzir um tom que é característico das grandes produções da HBO. É assim que, introduzidos no mundo de Sharp Objects, chegamos ao fim do primeiro episódio sem perceber de que história se trata. Há crimes, há dramas pessoais, há pesadelos e há vozes do passado que se envolvem no presente com uma qualidade quase paranormal.
“Há algo na forma como a Camille esconde a sua dor e não deixa que ela pare”, analisou Marti Noxon. Em tom meio confessional, Marti explicou que a descontinuidade temporal da série – em que o passado interrompe o presente de tal modo que nem sempre se sabe onde se está – é fruto da sua própria experiência como ex-alcoólica. Expõe o nevoeiro mental causado pelo álcool numa existência que procura ter a aparência de normalidade. E tudo isso é catártico. “Às vezes, descer a estes sítios escuros é uma cura.”
Aos 43 anos, Amy Adams tem em Sharp Objects um dos melhores desempenhos da sua carreira