Diário de Notícias

O renascimen­to da televisão

Nunca se fez tanta televisão e com tanta qualidade, o que é um fenómeno notável. Suspenda-se a tentação de desmerecer este formato, tão mais relevante que puro entretenim­ento

- A rubrica Um Ponto é Tudo, que aqui se publica, volta amanhã. ANA RITA GUERRA, em Los Angeles JORNALISTA

Vocês conseguem acreditar nalguns dos filmes que foram nomeados para os Óscares? Aquilo era para melhor filme?”, atirou Ray Liotta, com o seu sotaque nova-iorquino, para gáudio geral da audiência. O protagonis­ta de Goodfellas conseguira pôr toda a gente a rir de dez em dez segundos numa conversa de carreira durante o ATX TV Festival, provando que é muito mais engraçado que as suas personagen­s sombrias deixariam entrever.

O nome pode não ser o mais conhecido de Hollywood, mas a cara e os intensos olhos azuis são instantane­amente familiares. Naquela tarde de um calor pavoroso em Austin, Texas, Liotta deixou entrever um desalento comum em Hollywood: já não se fazem os filmes arriscados que se faziam antes. “Todo o cenário do cinema mudou em relação a quando comecei”, disse. Acabou o investimen­to em filmes mais de nicho, agora “fazem-se as coisas que cabem numa grande tenda”. Que é como dizer, os filmes que podem apelar a grandes audiências, como os super-heróis e os remakes. As ideias realmente ambiciosas encontram-se agora na televisão. De alguma forma, houve uma inversão total de papéis.

A ideia de um renascimen­to da televisão começou a circular com mais força nos últimos anos, desde que os serviços de streaming passaram a investir milhões em programaçã­o original não dependente dos números de audiência semanais. A Netflix liderou a parada, a Amazon e a Hulu seguiram-lhe os passos, e agora há uma guerra generaliza­da pelos melhores criadores e as histórias mais originais. No ano passado, bateu-se o recorde de séries narrativas na televisão, com o número espantoso de 487 nos canais básicos, cabo e streaming. Esta “Peak TV” atraiu celebridad­es que há uns anos nem sonhariam fazer televisão; e isso é uma das coisas que torna este momento tão glorioso no pequeno ecrã. O próprio Ray Liotta vai para a terceira e última temporada da série Shades of Blue, que protagoniz­a com Jennifer Lopez, e está “sedento” de mais uma fornada de 13 episódios.

Nunca se fez tanta televisão e com tanta qualidade, o que é um fenómeno notável. Suspenda-se a tentação de desmerecer este formato, tão mais relevante que puro entretenim­ento. Há algo a dizer quando um festival de televisão no meio do Texas atrai milhares de pessoas vindas de toda a América, que aguentam horas à torreira do sol nas filas para as estreias e painéis, que às vezes sabem mais sobre as séries do que os protagonis­tas, que vivem as histórias ficcionais como se fossem suas – porque, de certa forma, são.

O que é espantoso neste momento de ressurgênc­ia criativa é a possibilid­ade de representa­r gente que até aqui viveu nas margens da ficção. Se há dúvidas quanto à importânci­a de nos vermos representa­dos no espaço público, olhemos para a excitação que continuamo­s a ter quando há um filme que menciona Portugal, uma série com uma personagem portuguesa, um músico luso-descendent­e que consegue dizer umas palavras na nossa língua, um jornal que destaca as maravilhas de Lisboa. Essa representa­ção é sentida como uma validação do modo de ser. Um carimbo sobre a nossa existência. Estas séries que puxam para o centro personagen­s femininas complexas, como Big Little Lies e a nova Sharp Objects (na foto), que mostram pessoas de outras raças em posições de poder, como S.W.A.T., que usam formatos narrativos diferentes, como The Affair, captam algo que esteve suprimido durante décadas. As conversas entusiasma­das que ouvi no ATX TV Festival mostram quão poderosa e catártica pode ser esta experiênci­a. Tal como o regresso de Roseanne foi sentido pelos apoiantes de Trump como um triunfo cultural, Roswell, New Mexico virá como um grito de resistênci­a envolto em histórias de extraterre­stres. O poder das narrativas femininas que estão a ganhar espaço terá, certamente, um grande impacto nas novas gerações. A responsabi­lidade de quem tem poder em Hollywood nunca foi tão escrutinad­a, e parece que chegámos a um ponto em que já não dá para pôr o génio de volta na lâmpada. Talvez seja arriscado dizer que arte como esta pode ter força suficiente para fazer mover a agulha. Mas é, pelo menos, um sintoma do que está realmente a mudar.

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal