Diário de Notícias

JOSÉ MÁRIO BRANCO

UM ACERTO DE CONTAS, EM CD DUPLO, AO FIM DE 15 ANOS DE QUASE SILÊNCIO

- JOÃO GOBERN

Manuel João Vieira e Gustavo Sequeira são duas das vozes convidades no disco de José Mário Branco

Se olharmos apenas aos discos em nome próprio, descurando o momento histórico em que se juntou em palco (e em registo) a Sérgio Godinho e a Fausto Bordalo Dias (Três Cantos, 2009) e ignorando a sua presença constante e “tutelar” nas luminosas gravações de Camané, estas são as primeiras novas alargadas de José Mário Branco em quase dezena e meia de anos (desde Resistir é Vencer, 2004). Pouco importa desfiar o novelo das razões para tão pesado “silêncio”, que, ainda assim, passará mais pelas alterações drásticas do panorama editorial e de divulgação que atravessam­os do que por algo de semelhante a um secar da fonte que inspira e motiva um dos nossos autores maiores.

O tempo é de aproveitar a disponibil­idade do homem que nos deu Margem de Certa Maneira e Ser Solidário para voltar atrás, nunca recuando, e coligir uma série generosa das suas impressões digitais que ameaçavam perder-se nas brumas do esquecimen­to, sinónimo de desperdíci­o e de desrespeit­o por uma série de memórias fundamenta­is, até pela atualidade e profundida­de de que continuam a vestir-se.

Assinale-se o enquadrame­nto honesto de cada um dos 26 compassos desta recolha com o momento que os viu nascer – basta atentar na instrument­ação dos cantares iniciais (cantigas de amigo) e depois acompanhar a par e passo cada um dos interesses e “tendências”, bem diversos, de José Mário Branco, que nos fazem felizes, em desafiante­s sobressalt­os. Impression­a, em simultâneo, a inquietaçã­o que muitas destas canções provocam, também, pelo reflexo de atualidade que respiram. Como se, estando hoje bem diferentes, não tivéssemos visto mudar o essencial da nossa condição – lá estão Cantar daViúva do Emigrante, Fuga do Mar, Remendos e Côdeas ou Quantos é Que Nós Somos a atestar os caminhos andados e os que ficaram por trilhar. Exemplar, a abordagem de uma passagem do poema de Manuela de Freitas e do compositor/cantor: “Entre o Abril que fizemos / E o Abril desejado / É natural que paguemos / A conta do que perdemos / Por não nos termos contado / Ai, quantos é que nós fomos! / E quantos é que nós somos…”. São ocasiões em que José Mário Branco recupera, sem tropeçar nas datas, uma extensão – política, filosófica, social, interventi­va – da canção, reempossad­a no seu estatuto de alerta, recuperada para uma condição de combate de que também se faz a história das cantigas. Sem limites ou preconceit­os A multiplica­ção dos estilos, sem cópias mas quase sem preconceit­os, valeu sempre como um dos trunfos de José Mário Branco. Basta voltar às suas incursões pelo fado e pelo jazz, pela música erudita e pelos códigos tradiciona­is portuguese­s, para percebermo­s que a inspiração e a prática do compositor não conhecem limites. Dúvidas houvesse, embora só possíveis a quem tenha andado distraído durante várias décadas , este disco viria dissipá-las. Na busca de um passado que ainda não tinha chegado ao formato CD, apresentam-se inéditos e raridades das mais variadas proveniênc­ias: gravações em suportes “desapareci­dos”, canções para filmes e para trabalhos coletivos, aventuras longínquas, até uma “encomenda” da cidade francesa de Montpellie­r para uma suite instrument­al.

Quase apetece dizer que as “origens” acabam por desaguar nas múltiplas formas que se vão descobrind­o neste percurso de fascínio e magnetismo, capaz de traduzir lógicas distintas e um conhecimen­to quase renascenti­sta no homem chamado ao papel de protagonis­ta, porque acaba sempre por ser ele a unir os pontos espalhados faixa a faixa. Temos direito às raízes mais fundas, nos sete capítulos dedicados às cantigas de amigo, espaços de afirmação para um compositor e para um cantor, cuja voz grave fica desde logo identifica­da, e merece não ser perdida de vista. Há uma marcha popular, aqui reservada à cidade natal de José Mário Branco. Há as escalas da urgência política, nunca simplistas. Há digressões pelo francês, pelo italiano, pelo castelhano. Há o significat­ivo abraço a poetas (Alexandre O’Neill) e a inspirador­es (Bertolt Brecht). Há, até, meia dúzia de incursões “à maneira de” gente que, por diferentes formas, ajudou a marcar a música popular – para que conste: Os Conchas, Eddy Mitchell, Adriano Celentano, Helmut Zacharias, os Shadows e Antonio Machin. O cantor chega mesmo a ceder o seu lugar, muito menos cativo do que o de outros, a vozes terceiras, como a de Manuel João Vieira (Ena Pá 2000) e a de Gustavo Sequeira (que integrou o Quarteto Música Em Si). Em resumo, ficam excluídos os tempos mortos e fica demonstrad­o como se pode, a partir de escalas que pareciam condenadas à exclusão da proximidad­e com o grande público, construir uma antologia alternativ­a para retratar um músico.

Um disco assim, mesmo que as datas originais nos empurrem para o século passado, chega – e sobra – para já sabermos que a média das avaliações de 2018, na música portuguesa, vai ser mais alta. O que acaba, em boa verdade, por não constituir surpresa alguma: quem assina é José Mário Branco. Com quem já sabemos que podemos contar, “para cantar e para o resto”. Só falta mesmo apurar quando nos chega esse “resto”.

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 ??  ?? Desde 2004, ano em que lançou Resistir é Vencer, que José Mário Branco não editava um disco em nome próprio
Desde 2004, ano em que lançou Resistir é Vencer, que José Mário Branco não editava um disco em nome próprio
 ??  ?? Inéditos 1967-1999José Mário Branco Warner /Parlophone PVP: 12,99
Inéditos 1967-1999José Mário Branco Warner /Parlophone PVP: 12,99

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