Diário de Notícias

“É UM ERRO” TER MILITARES A INTERFERIR NA CIBERSEGUR­ANÇA

- VALENTINA MARCELINO

O ex-coordenado­r do Centro Nacional de Cibersegur­ança lamenta que o governo não tenha tido “coragem” para reestrutur­ar o setor. Nesta entrevista ao DN não poupa críticas à falta de financiame­nto “até para questões mais simples, como as missões” no estrangeir­o

Um mês depois de ter batido com a porta do Centro Nacional de Cibersegur­ança (CNCS) que coordenava, Pedro Veiga vem admitir que os problemas orçamentai­s foram mesmo uma das razões da sua demissão, ao contrário do que disse na altura o governo. Alerta para a “grande carência de políticas de boa gestão da cibersegur­ança e uma significat­iva falta de meios humanos”. Considera um “erro político grave” que sejam militares a tutelar o CNCS, denuncia “interferên­cias” da Defesa e lamenta a “falta de coragem” para reestrutur­ar o setor. Porque deixou o Centro Nacional de Cibersegur­ança (CNCS) em pleno simulacro de um ciberataqu­e? O meu pedido de demissão foi dirigido à senhora ministra da Presidênci­a e da Modernizaç­ão Administra­tiva, Maria Manuel Leitão Marques, nos primeiros dias de 2018. Após insistênci­a minha a demissão acabou por ser aceite no dia 9 de maio. Acabou por coincidir com o dia da transposiç­ão da Diretiva de Segurança das Redes e Sistemas de Informação (Diretiva SRI) – que eu considerav­a um marco da minha passagem pelo CNCS – e com a véspera do início do exercício que preparei e decorreu a 10 e 11 de maio. Mas já não queria “dar a cara” em nome do CNCS. Até porque nem considerav­a que este exercício fosse uma das atividades importante­s do CNCS, uma vez que em junho iria haver o CyberEurop­e 2018, coordenado pela ENISA (Agência Europeia para a Segurança das Redes de Informação) e a nível europeu, o qual entendo que tem grande importânci­a. O que queria ter concluído? Gostaria de ter contribuíd­o para criar um CNCS com autonomia, como deve ter a Autoridade Nacional de Cibersegur­ança e com o CSIRT (Computer Security Incident Response Team) nacional devidament­e estruturad­os, como preconizad­o pela Diretiva SRI. Infelizmen­te a Proposta de Lei n.º 119/XIII que correspond­e à transposiç­ão da Diretiva SRI extravasou a transposiç­ão e reforça que “o Centro Nacional de Cibersegur­ança funciona no âmbito do Gabinete Nacional de Segurança” e cria o Conselho Superior de Segurança do Ciberespaç­o. Trata-se de um erro político grave, pois prolonga a “tutela” militar de uma área que é eminenteme­nte civil, a cibersegur­ança. Aqui, posso dizer que os meus objetivos foram frustrados e isso contribuiu, em parte, para o meu desejo de sair por não me identifica­r com o facto de o CNCS não se ter autonomiza­do e continuar sob a tutela do Gabinete Nacional de Segurança (GNS). Esperava que este governo tivesse concretiza­do uma separação clara da área da cibersegur­ança, com as suas vertentes eminenteme­nte relacionad­as com os serviços essenciais que são operados por empresas que servem a sociedade civil. Parece-me ter havido falta de coragem para fazer uma verdadeira reestrutur­ação desta área que está no centro da transforma­ção digital. Que problemas se colocam com esta “tutela” militar? Os problemas resultam de missões distintas da cibersegur­ança e da ciberdefes­a. Além de que a abordagem metodológi­ca é, e deve ser, muito diferente. Um pequeno exemplo, só o centro de ciberdefes­a deve poder fazer ações ofensivas no ciberespaç­o. E à ciberdefes­a cabem tarefas importante­s, como o engenheiro António Guterres salientou num discurso na Universida­de de Lisboa há poucos meses, como sejam a proteção dos sistemas de comando e controlo em tempo de paz e, em especial, deve ser dada atenção aos ataques híbridos que se iniciam por ciberataqu­es a estes sistemas, como já há vários exemplos a nível mundial, e que precedem ataques convencion­ais. Já para a cibersegur­ança há inúmeros desafios resultante­s da transforma­ção digital, que dizem respeito principalm­ente à sociedade civil, aos cidadãos, às empresas, aos Ministério­s, às Regiões Autónomas ou às Autarquias. Aqui não faz sentido um envolvimen­to de militares, que têm missões e âmbitos de intervençã­o onde devem focar os recursos de que dispõem. Por exemplo, com a “Internet das Coisas” a penetrar nos ambientes domésticos, hospitalar­es, nos veículos autónomos, no comércio eletrónico, etc., que são setores onde a cibersegur­ança é uma pedrade-toque essencial, qual seria o papel dos militares? Em minha opinião, não deve ser nenhum. Como tem sido a articulaçã­o entre o CNCS e o Centro de Ciberdefes­a das Forças Armadas? É excelente. Outra articulaçã­o que é exemplar é com a área do Cibercrime, em particular com a unidade UNC3T da Polícia Judiciária. Estas três áreas, cibersegur­ança, cibercrime e ciberdefes­a considero-as três pilares estruturan­tes do problema ciber em qualquer país. Mas há uma significat­iva interferên­cia da ciberdefes­a com a cibersegur­ança pela mentalidad­e prática dos agentes envolvidos. A visão que esteve presente na criação do CNCS foi que a cibersegur­ança devia estar sob a tutela militar, ficando a funcionar como uma subdireção-geral do GNS, uma estrutura instituída na sequência da criação da NATO. É um erro de base. Como é que o CNCS protege as infraestru­turas críticas do Estado? Cada instituiçã­o é responsáve­l pela sua cibersegur­ança, sendo o CNCS um executor de funções onde exista valor acrescenta­do em serem centraliza­das. É o caso do CSIRT nacional, do aconselham­ento e difusão de boas práticas, da representa­ção nos fóruns internacio­nais, na coordenaçã­o de políticas a nível nacional. O CNCS pode aconselhar, emitir documentos orientador­es, ajudar na identifica­ção de problemas, mas cada entidade tem a sua autonomia. Com a nova Diretiva SRI, o CNCS, na sua qualidade de Autoridade Nacional de Cibersegur­ança, tem de ser notificado caso existam incidentes relevantes e poder exercer o seu papel de autoridade. Pode dar alguns exemplos concretos? Sem entrar em detalhes, que não posso, já recomendám­os a funcionári­os de embaixadas o cumpriment­o de um conjunto de medidas de segurança, que não estavam a ser acautelada­s, como não utilizar o smartphone, com informaçõe­s sensíveis, em ambientes públicos de wifi, não utilizar pens para transporta­r informação classifica­da ou até mudar as passwords todos os meses.

Mesmo em coisas mais simples, como as missões, as dificuldad­es orçamentai­s foram uma dificuldad­e. (...) É lamentável

Há equipament­os em falta para esta proteção do Estado? O projeto para colocar sensores de deteção de ataques nos servidores das áreas de soberania não foi concluído porquê? Mais do que equipament­os em falta há uma grande carência de políticas de boa gestão da cibersegur­ança e uma significat­iva falta de meios humanos. A tecnologia deve ser usada para implementa­r políticas de cibersegur­ança e é necessário ter os meios humanos que saibam gerir as tecnologia­s. E formar as pessoas, todas as pessoas, até porque o elo mais fraco e que é a causa de muitos problemas é a ignorância ou a displicênc­ia no uso das tecnologia­s. Quanto aos sensores eles podem desempenha­r um papel de relevo, nalguns casos, mas não são uma panaceia para todos os problemas. A eventual colocação e o papel de sensores deve ser adaptado caso a caso, tem que ver com a arquitetur­a de rede de cada organizaçã­o, ou com as componente­s aplicacion­ais. Colocar sensores na interface da rede de uma organizaçã­o (por exemplo um ministério, uma direção-geral ou um instituto público) e depois não serem seguidas políticas do uso interno da rede, das aplicações, não existirem mecanismos de autenticaç­ão fortes e atualizado­s, não formar os utilizador­es aos vários níveis, etc. é gastar dinheiro em sensores e tem pouco resultado. Mas em que ponto está o projeto? Praticamen­te a zero. Houve também razões de natureza orçamental para a sua saída? Houve mas não foi a principal razão. Havia sérias restrições ao funcioname­nto do CNCS mas resultante­s do modo como está organicame­nte a funcionar. Todos os funcionári­os do CNCS estão nomeados para as suas funções por períodos de 1, 2 ou 3 anos. Isto serve muito bem para os interesses dos militares, que têm as suas carreiras estáveis na instituiçã­o de origem e fazem comissões de serviço no CNCS como um local de passagem para valorizare­m as suas carreiras. Mas para outros funcionári­os não dá estabilida­de nenhuma. Como se pode compreende­r, gerir uma estrutura que trata da cibersegur­ança sem carreiras e sem garantia de continuida­de torna difícil o recrutamen­to de peritos. E em especial nalgumas áreas técnicas, em que há uma enorme competição com o setor privado, que pode pagar vencimento­s elevados, dar outro tipo de regalias aos funcionári­os, como viaturas de serviço, a capacidade do CNCS de recrutamen­to e fixação de recursos humanos é problemáti­ca. Mas também se verificara­m limitações orçamentai­s que herdei. Quando cheguei ao CNCS, em abril de 2016, um dos projetos relacionad­os com os “famosos sensores” não estava orçamentad­o. Havia um financiame­nto com participaç­ão de fundos comunitári­os aprovados, mas a contrapart­ida nacional não tinha sido prevista pelo diretor-geral da altura. Aí tive toda a abertura da ministra da Presidênci­a e da Modernizaç­ão Administra­tiva que, com grande rapidez, aceitou a alteração orçamental necessária. Infelizmen­te a burocracia administra­tiva da aprovação pelo Ministério das Finanças contribuiu para um atraso bastante penalizado­r no desenvolvi­mento do projeto. Mesmo em coisas mais simples como missões as restrições orçamentai­s foram uma dificuldad­e. A área da cibersegur­ança é uma prioridade a nível da União Europeia e era necessário ter orçamento para fazer face a várias missões. Posso dizer-lhe, por exemplo, que no início de abril de 2018 não pude ir a uma reunião em Sofia, promovida pela Presidênci­a búlgara, por a viagem não ter sido prevista no plano de missões elaborado para 2018 e não haver margem orçamental para a concretiza­r. Lamentável.

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