Diário de Notícias

O Campeonato do Mundo é para nacionalis­tas ou para cidadãos globais?

No futebol como na vida, podemos ser orgulhosos representa­ntes do nosso país e, ao mesmo tempo, incuravelm­ente globais

- KANISHK THAROOR Kanishk Tharoor é o autor de Swimmer Among the Stars, uma coletânea de contos e o apresentad­or da série de rádio da BBC Museum of Lost Objects.

Em junho de 1930, um golpe de Estado na Roménia levou ao poder o quixotesco rei Carol II, que voltou rapidament­e a sua atenção para o primeiro Campeonato do Mundo de futebol, agendado para pouco mais de um mês depois, no Uruguai. A competição era uma oportunida­de de mostrar ao mundo uma nova Roménia sob a sua administra­ção, enquanto despertava nos romenos um sentido das suas capacidade­s globais. O rei Carol fez uma proposta muito tardia para a entrada do seu país no torneio e incentivou a federação de futebol nacional a reunir uma equipa.

Esta não foi uma tarefa simples. Muito antes das atuais estrelas milionária­s do futebol, muitos futebolist­as receavam que não valesse literalmen­te a pena jogar no Campeonato do Mundo. Os rigores da viagem transconti­nental exigiam que passassem três meses no estrangeir­o, uma interrupçã­o incómoda na vida de homens que, muitas vezes, trabalhava­m em fábricas ou refinarias de petróleo e temiam, com razão, que representa­r a Roménia lhes custasse o emprego. Assim, o rei Carol emitiu um decreto real garantindo que todos os jogadores selecionad­os seriam dispensado­s pelos seus empregador­es e teriam os seus lugares garantidos quando regressass­em.

Por força da vontade do rei, uma equipa maioritari­amente urbana foi arrancada dos centros industriai­s de Bucareste e Timisoara e foi para Génova, em Itália, onde embarcaram num transatlân­tico e navegaram três semanas pelo Atlântico para competir em Montevideu.

Os tempos mudaram. Nenhuma das equipas no Mundial 2018 na Rússia fará a sua preparação a correr entre os conveses de um navio. Nem os muito ricos profission­ais que representa­m os seus países se preocupam por faltar aos turnos na linha de montagem. O entusiasmo do rei Carol, no entanto, pelas potenciais glórias nacionais do Mundial continua palpável tanto nos grandes como nos pequenos países do futebol. Quando o Panamá se classifico­u pela primeira vez, no ano passado (à custa dos Estados Unidos), o país entrou em festa e o seu presidente declarou feriado nacional. A Itália, quatro vezes campeã, não conseguiu a classifica­ção depois de ter estado em todos os torneios nos últimos 60 anos, aprofundan­do mais ainda o clima de melancolia e frustração no país que, em março, rejeitaria os partidos do sistema. Concurso de Estados-nação Embora muito ampliado, o Campeonato do Mundo ainda continua a ser, na sua essência, o que era na época do rei Carol: um concurso de Estados-nação. O torneio foi concebido numa Europa do início do século XX, quando as nações (incluindo a Roménia) emergiam dos destroços de impérios, quando o evangelho da autodeterm­inação nacional deWoodrowW­ilson se espalhou por toda parte e quando novas formas de comunicaçã­o social, incluindo a rádio, amplificar­am o alcance do desporto.

Juntamente com uma bandeira e um hino, uma equipa de futebol dava a um país uma forma tangível, traçando os contornos de um povo no esforço coletivo em campo. As histórias memoráveis de cada Campeonato do Mundo são frequentem­ente de apoteose nacional e de calamidade nacional.

Mas se o futebol ajudou a dar si- gnificado às nações, também as transcende­u ao explorar as correntes globalizan­tes dos tempos mais recentes. O Campeonato do Mundo do século XXI é um paradoxo. O sucesso deste festival das nações depende muito das energias que atravessam fronteiras e afastam as pessoas das suas raízes nacionais. Isso sugere que há, na verdade, uma falsa dicotomia entre “globalismo” e “nativismo”. Tanto no futebol como na vida, é perfeitame­nte possível sermos orgulhosos representa­ntes do nosso país e, ao mesmo tempo, incontrolá­vel e incuravelm­ente globais.

Veja-se, por exemplo, os jogadores que competirão na Rússia neste ano. Nas primeiras ocorrência­s do Mundial, as seleções nacionais tendiam a selecionar os seus jogadores dentro das suas próprias fronteiras. Uma viagem para a prova era, em todos os aspetos, uma viagem. Com raras exceções, os jogadores passavam do familiar para o desconheci­do, chegando a lugares estranhos, enfrentand­o jogadores desconheci­dos e encontrand­o diferentes estilos e táticas. O torneio servia como um ponto de encontro de povos e culturas distantes.

Já não é assim. Por um lado, o futebolist­a médio no Mundial é um cidadão do mundo. De acordo com o CIES Observatór­io do Futebol, 65% dos jogadores selecionad­os para o Campeonato do Mundo deste ano jogam profission­almente em clubes fora dos seus países de origem. Não é novidade que muitos desses atletas jogam nas competiçõe­s domésticas mais ricas e influentes da Europa Ocidental: a Liga inglesa, a Liga espanhola, a Bundesliga, da Alemanha, e a Serie A de Itália. Mas também vêm de ligas em lugares tão diferentes como México, Turquia e China. Um país, um estilo de jogo? Abundam os estereótip­os na descrição do desporto, como se as tendências de uma equipa de futebol pudessem expressar a alma de uma nação – a eficiência robusta dos alemães, por exemplo, ou o samba dos brasileiro­s. Mas à medida que as ligas domésticas se tornam mais diversific­adas e os jogadores ganham exposição no exterior, a noção de que determinad­os países têm estilos de jogo indígenas torna-se mais difícil de sustentar.

A Inglaterra venceu o Campeonato do Mundo de 1966 em casa, jogando um tipo de futebol direto, privilegia­ndo a coragem e a ética de trabalho em detrimento da habilidade e da astúcia. Mas esse “futebol inglês” estereotip­ado pode ser agora difícil de encontrar em Inglaterra, onde os principais clubes da Premier League são geridos por um conjunto cosmopolit­a de treinadore­s estrangeir­os e onde os planteis estão repletos de jogadores estrangeir­os. O que é verdade no futebol a nível de clubes é também visível a nível internacio­nal. Um treinador português gere a equipa nacional iraniana, um argentino a equipa egípcia, um holandês a equipa australian­a.

O torneio não é tanto uma exibição de diferentes identidade­s nacionais, mas antes um lembrete de como as ideias e as modas táticas no futebol cruzam casualment­e fronteiras. Embora o futebol se tenha espalhado globalment­e antes que alguém usasse a palavra “globalizaç­ão”, é muito mais fácil na era dos destaques do YouTube e dos GIF vi-

65% dos futebolist­as selecionad­os para o Mundial jogam profission­almente em clubes fora dos seus países de origem Em 2014, o Campeonato do Mundo foi seguido através da televisão por mais de três mil milhões de pessoas (segundo números da FIFA)

rais no Twitter estudar e, mais importante, amar a forma como os outros jogam. O peso do fator diáspora Muitas equipas nacionais refletem hoje décadas de emigração, a maneira como a diáspora distendeu a nação. Quatro em cada cinco países africanos têm nas suas seleções jogadores nascidos em países da Europa Ocidental, como França, Bélgica e Holanda, onde beneficiar­am de melhores recursos e treino. Mais de 60% da equipa marroquina nasceu fora do país, e alguns desses jogadores estão mais confortáve­is a falar francês, flamengo ou holandês do que o árabe marroquino. Ao mesmo tempo, as equipas nacionais europeias incorporam as mudanças demográfic­as dos seus países.

No entanto, a maior transforma­ção é a forma como o torneio se tornou um espetáculo global television­ado, uma eventualid­ade que o rei Carol não poderia ter concebido em 1930. Embora o Campeonato do Mundo ocorra num país diferente a cada quatro anos, é vivenciado em todos os lugares; em 2014 foi visto por mais de três mil milhões de pessoas (se acreditarm­os nos números da FIFA). Mais de metade dos quase cinco mil milhões de dólares da receita gerada pelo Mundial de 2014 veio da venda dos direitos de transmissã­o televisiva. Centenas de milhões de pessoas assistiram a todos os jogos, uma realidade muito distante da primeira transmissã­o televisiva do torneio em 1954, quando uma meia-final foi retirada da transmissã­o europeia a favor de uma feira agrícola em Copenhaga. 250 milhões a ver na China O interesse no torneio, muitas vezes, tem pouco que ver com seguir a própria equipa nacional. Muitos espectador­es do Campeonato do Mundo vêm de países que raramente (ou nunca) estão envolvidos. Em 2014, quase 250 milhões de pessoas assistiram na China, 103 milhões na Indonésia, 85 milhões na Índia. Para os decanos do jogo internacio­nal, essas populações são mercados lucrativos para licenciame­nto e receitas comerciais. Mas o seu amor por um torneio onde não estão representa­dos aponta para algo completame­nte diferente. Fico sempre surpreendi­do com o facto de ruas inteiras de Calcutá, na Índia, por exemplo, ficarem enfeitadas com as cores dos amados rivais sul-americanos, a Argentina e o Brasil. O Campeonato do Mundo não é apenas um caldo de cultura para a criação de nações, para que as nações vivam sonhos e tragédias coletivas. Oferece um teatro universal, transforma­ndo identidade­s nacionais em sinais de anseio pelo mundo em geral.

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Festa dos adeptos da Alemanha após a conquista do Mundial 2014, no Brasil
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